Dizem que o tradutor é um traidor, mas para muitos leitores que não se aventuram por outras línguas e conhecem obras em seu idioma original, é também a porta de entrada para um mundo incrível e rico, a literatura estrangeira. Para essa breve entrevista cedida gentilmente por Jorge Candeias, responsável por nada menos que a tradução de Guerra dos Tronos, que chegou ao Brasil impulsionado pelo seriado da HBO e já faz grande sucesso com leitores que não conheciam a obra de Martin antes da localização, ele nos conta sobre o ofício do tradutor e sua relação com o trabalho de ficcionista. Por uma questão de respeito à expressão autoral, não submeti o texto a correção ortográfica para o português brasileiro ou para o acordo firmado, conto com sua compreensão.
Como a tradução de literatura fantástica se relaciona com o seu trabalho como ficcionista?
Relaciona-se fortemente e de formas contraditórias. Por um lado, permite-me manter uma atividade constante de escrita, que na maior parte das outras profissões não existiria, e isso tem importância porque, na escrita, como em muitas outras coisas, a prática é fundamental para afinar a técnica. Além disso, a profissão de tradutor obriga-me a ter uma atenção muito particular sobre o modo de funcionamento da língua portuguesa, e isso fez com a use agora bastante melhor do que a usava antes de enveredar por esta profissão. Mas por outro lado, a tradução ocupa-me muito do tempo que antes dedicava à escrita e à leitura. E gasta-me a maior parte de algo a que só consigo chamar “energia linguística”. Não tem nada de místico, descansem. Mas comigo acontece que só consigo escrever uma quantidade limitada de texto antes do cansaço se começar a instalar e a qualidade começar a ressentir-se. Posso estar em perfeitas condições para fazer outras coisas, mas estou linguisticamente cansado, e o que sai quando tento escrever não é grande coisa. Como consequência, escrevo hoje menos do que escrevia há seis anos. Mas acho que escrevo melhor.
Julgo que o facto de ter traduzido principalmente literatura fantástica, nas suas várias vertentes (a exceção foi um romance histórico, e esse foi logo o primeiro livro que traduzi; desde então tem sido principalmente fantasia, mas também história alternativa e ficção científica), não tem grande impacto no que disse acima, ou seja, julgo que se me dedicasse à tradução de outros tipos de literatura o resultado seria basicamente o mesmo. Embora o mais certo fosse ter menos prazer naquilo com que ganho a vida.
Como é lidar com as suas preferências autorais enquanto tenta traduzir o estilo de cada autor?
Depende de autor para autor. Com o George R. R. Martin é duma simplicidade quase assustadora, porque a minha forma de escrever se encaixa na dele muito bem. Não sei se serão propriamente parecidas (duvido) quando escrevo ficção, mas na tradução não tenho problemas em adaptar-me à voz dele. Ou pelo menos tenho menos problemas do que com outros autores. Entre os que traduzi, o pior, nesse aspecto, foi Frank Herbert. O estilo dele colide de tal modo com o meu que o “Duna” foi o único livro que tive de rever por duas vezes antes de o achar suficientemente decente para o entregar à editora. Levei metade do livro a lutar por encontrar um equilíbrio entre o estilo dele e o meu (é sempre uma questão de equilíbrio, em todas as traduções, mesmo que os leitores raramente se apercebam disso), a lutar por conseguir passar o inglês dele para português duma forma que fosse fiel ao mesmo tempo que não me pusesse os cabelos em pé. As opiniões que fui lendo por aí dizem-me que acabei por conseguir, mas andei preocupado durante uns tempos.
Mas o pior, mesmo, é quando não gostamos do que estamos a traduzir. Aí há que fazer das tripas coração e tentar fazer o melhor trabalho possível, enquanto vamos resmungando com os nossos botões sobre a porcaria que aquilo é. Fazer coisas menos agradáveis calha a todos, em todas as profissões, e os tradutores, como é óbvio, não estão imunes. Comigo, aconteceu no início da carreira, quando andei a traduzir contos do Robert E. Howard. Espada e feitiçaria, Conan e Solomon Kane, do melhor do velho pulp, talvez, mas velho pulp na mesma. Não gosto nada daquilo. Mas fez-se, e se fosse preciso voltar-se-ia a fazer.
O que considerou mais prazeroso na tradução de uma série como “Game of Thrones – A Guerra dos Tronos”? E o que considerou mais difícil e problemático?
O que me tem dado mais prazer na tradução das Crónicas de Gelo e Fogo têm sido duas coisas.
Por um lado, os diálogos. Arranjar equivalentes em português para os trocadilhos, as ironias, os discursos deturpados de algumas personagens, tudo isso, é um desafio constante mas ao mesmo tempo dá-me um gozo enorme. Tanto quanto, suponho, deu ao Martin escrevê-los. Sim, que tenho a certeza de que o Martin se diverte que nem um nababo a escrever as Crónicas. Embora às vezes também lhe doa, certamente.
Por outro lado, há capítulos inteiros que adoro pela pura qualidade do texto, pela forma como o Martin nos vai levando ao longo das páginas quase como se dançasse connosco. Esses capítulos são os meus preferidos, e são das coisas que mais prazer me tem dado traduzir. E ler.
Quanto às dificuldades, também são principalmente duas.
Por um lado, os poemas. Traduzir poesia é inerentemente complicado, coisa para tradutores especializados, algo que eu não sou. Por isso, sempre que me aparece um poema à frente, em especial dos poemas que normalmente surgem nas Crónicas, quase todos letras de canções, já sei que me esperam horas de trabalho para pouco avanço. Porque procuro sempre fazer com que poema que rime e tenha métrica no original continue a rimar e a ter métrica na tradução. Se é uma canção, se é para cantar, deve conseguir-se cantar também em português. Isso é muito, muito complicado porque a estrutura das duas línguas é suficientemente diferente para exigir adaptações. Mas é trabalho que também tem as suas compensações. Quando li, no fórum da editora Saída de Emergência, uma leitora a dizer que até arranjou uma música para trautear a canção do urso e da donzela, fiz um sorriso de orelha a orelha e larguei um “YES!” de missão cumprida.
Por outro lado, são as cenas navais e as de ação (e das navais de ação, então, nem se fala). As navais porque a gíria náutica é muito peculiar e não há cena passada em navios que não exija perder bastante tempo a investigar o que raio significa a palavra X e como diabo se diz aquilo em português. Sim, costuma haver resmungos. As de ação porque a língua inglesa é mais rica do que a nossa na terminologia ligada à pancadaria, e muitas vezes é desafiante arranjar equivalentes em português, em especial se as cenas são longas e há que evitar as repetições.
Em uma época em que traduções amadoras surgem na internet como uma opção para trabalhos que demoram a ser localizados, como você vê a importância do trabalho do tradutor “oficial”?
É fundamental. Se me permitem a analogia, a diferença entre uma tradução de internet e uma tradução a sério é a diferença que há entre um daqueles vídeos que se encontram no youtube filmados com telemóveis em concertos e os vídeos oficiais das canções. Há, e haverá sempre, quem consuma alegremente os _bootlegs_, mas quem tem alguma exigência foge deles como diabo da cruz.
Claro, a analogia é imperfeita. Porque a profissão tem maus tradutores, maus adaptadores de traduções, etc. Sempre os teve, como bem sabem os leitores da coleção Argonauta, e continua a tê-los. O aparecimento do fenómeno das traduções piratas faz com que não só os profissionais tenham de ter mais brio naquilo que fazem, como as próprias editoras devam estar bastante atentas, por um lado para se tentarem assegurar de que estão a contratar bons tradutores, e não apenas tradutores baratos, e por outro para garantirem a publicação mais rápida possível das obras mais relevantes em português. Nunca poderemos traduzir tudo; os mercados lusófonos pura e simplesmente não têm, nem nunca terão, dimensão para tal (até porque incluem a produção local, e ainda bem). Mas as obras que o público procura devem ser publicadas em português o mais depressa possível.
Até porque o público, se lhe forem dadas boas traduções profissionais, acaba por se aperceber da diferença. Se só lhe for dado lixo, prefere, como é óbvio, o lixo gratuito e rapidamente disponível. Tradutores incapazes de traduzir melhor do que o Google pura e simplesmente deixarão de ter trabalho muito em breve. Mas a diferença entre um livro mal traduzido e um livro bem traduzido é muito grande, e as pessoas apercebem-se disso. Mesmo as pessoas que fazem gala de usar mal a língua e tendem a rejeitar quem a usa bem. Até o gosto dessas se educa, se lhes servirmos pratos bem confecionados. Ninguém está condenado à fast-food.
Agradecemos a Jorge Candeias pela entrevista, para quem se interessar por seu trabalho como escritor, publicou conosco em algumas coletâneas como Imaginários v.2, Vaporpunk e Dieselpunk.
0 Comments
Uma profissão privilegiada, que lhe permite viver vidas que não viveria se fizesse algo diferente, que não implicasse leitura. Como o Jojen Reed diz (mais ou menos, que esta passagem é de memória), “O homem que lê livros vive mil vidas. Aquele que não lê vive só uma.”
Tem alguma dicas para quem pense em seguir a sua carreira? O meu nível linguístico é excelente, tanto em Inglês como em Português, e adoro ler. Seria um sonho ganhar a vida dessa maneira.
Li um livro em que no lugar do nome do tradutor, vinha escrito DRAGO. Explique se possível, por favor.
É de nossa editora o livro? Qual é o título? Abraços!
Que legal essa entrevista. Este rapaz é extremamente talentoso.
Att.
Fred
Primeiramente ótima entrevista.
Como universitário do curso de tradução é sempre muito bom ver os tradutores dando entrevista e falando com o publico, por que as vezes parece que são inatingíveis.
Gostei muito da sua tradução dos três livros da série que saíram até agora. O maior problema ficou por conta da adaptação no primeiro livros de algumas palavras para o português do Brasil, mas obviamente a culpa não foi sua, apesar do tradutor levar a fama.
Continue com o ótimo trabalho.
Gostaria de saber se posso divulgar a entrevista no meu blog: http://interpretaroutraduzir.wordpress.com/
Obrigado.
Caro Heraldo, quem fala é Erick Santos, editor da Draco. Pode reproduzir sim, só peço a gentileza que credite e link para o nosso blog como fonte original.
abraços
Por que não “Uma canção de gelo e fogo”, em vez de “cronicas de gelo e fogo”? Por que não “Um jogo de tronos” em vez de “guerra dos tronos”?
Vale ressaltar como parece tão conveniente se apoiar em “cronicas”, “guerras” e “sagas” para intitular um lançamento em português. Conveniente, nada original e bem pouco poético!
Porque o marketing da editora (das editoras?) achou que assim atrairia mais potenciais leitores.
Já agora, e porque eu já tinha escrito sobre isso, aqui fica o link: http://lampadamagica.blogspot.com/2011/07/um-conselho-gratis-quem-faz-criticas.html
É vero, Jorge… ainda bem que em nenhum momento critiquei o tradutor, e sim a forma como são distorcidos os títulos. Tem cara de dublagem de filme, de tão bizarro.