O épico humano
julho 5, 2011
Títulos de nobreza, modo de usar
julho 7, 2011

Sherlock Holmes – além do cânone

Holmes e Watson em versões do cinema.

Um dos personagens mais famosos de toda a história da ficção, dos mais debatidos, dos mais reinterpretados, Sherlock Holmes é um daqueles casos em que a cria superou o criador. Até mesmo contra a vontade de seu autor, sir Arthur Conan Doyle (1859-1930), que tentou encerrar a carreira do detetive vitoriano com o conto “The Adventure of the Final Problem”, escrito em 1893 para a Strand Magazine, por achar seus demais escritos eclipsados pela popularidade do personagem. Como registra a história, a tentativa foi vã e Doyle se viu obrigado a atender a demanda de editores e leitores, resgatando Holmes e o restabelecendo para novas aventuras por mais uma década e meia, até bem perto de sua própria morte. Porém, o mais famoso morador do 221-B de Baker Street superou não apenas esse ato em vida do escritor, ele também continuou existindo pela pena de muitos outros autores bem além daquele que foi oficialmente o seu último romance, O Vale do Terror, de 1915.

Neil Gaiman, Michael Chabon, Henry Turtledove, Jô Soares, JJ Veiga, são apenas alguns dos inúmeros escritores que continuaram a saga do excêntrico detetive consultor para bem além do que foi originalmente imaginado por aquele que o criou, em 1887, no livro Um Estudo em Vermelho. A lenda de Sherlock Holmes está bem viva, como atestam as páginas trimestrais de The Baker Street Journal, o mais famoso periódico de estudos dedicado ao personagem e que faz uma compilação das muitas dezenas de obras que todos os anos dão continuidade àquele legado de Arthur Conan Doyle para além das mitológicas 60 histórias originalmente criadas por ele. Mas, a pergunta que eu faço é: você tem mesmo certeza de que foram apenas seis dezenas de aventuras, quatro romances e 56 contos, as imaginadas por Doyle para seu personagem mais conhecido?

Quem se atém, por um suposto preciosismo, apenas ao que se convencionou chamar do Cânone perde não apenas a oportunidade de conhecer outras reinterpretações do detetive vitoriano, como aquelas que a editora Draco publicou na coletânea Sherlock Holmes – Aventuras Secretas, organizada pela dupla Carlos Orsi Martinho e Marcelo Augusto Galvão. Esses puristas deixam de lado também alguns textos de autoria do próprio Conan Doyle que bem poderiam estar incluídos naquela coleção de material oficial e que, por motivos alheios à minha compreensão, não levam tal chancela. Um estudioso daquela obra, Peter Haining, compilou alguns ótimos exemplos de aventuras que mesmo tendo saído da mente do criador do Grande Detetive, não costumam ser muito citadas por seus leitores mais assíduos. The Final Adventures of Sherlock Holmes, traduzido no Brasil como Aventuras Inéditas de Sherlock Holmes, faz a compilação do material, em parte formado por textos de não-ficção, como comentários de bastidores e uma lista das histórias favoritas de Doyle, além de alguns contos e peças teatrais de autoria controversa. Como bem me alertou um dos organizadores da coletânea da Draco, Carlos Orsi, os escritos também constam do último volume – não à toa conhecido como “Apocrypha” – da Sherlock Holmes Reference Library, uma edição crítica do Cânone organizada por Leslie Klinger e que é inédita em nosso país. Nestas duas iniciativas também há aqueles textos literários dos quais não restam dúvida terem sido feitos pelo médico e escritor britânico. É sobre esses últimos que falarei aqui.

Em dois casos, o reconhecimento de que são aventuras legítimas pelo menos ocorre parcialmente, sendo as histórias incluídas em edições francesas do Cânone. “O Caso do Homem dos Relógios” e “O Caso do Trem Desaparecido” foram histórias escritas por Conan Doyle para aquela mesma Strand Magazine já citada, nos meses de julho e agosto de 1898, portanto, cinco anos depois do escritor ter tentado ser bem sucedido na primeira morte de Holmes. As histórias também têm em comum sua estrutura: casos misteriosos são relatados e mobilizam a sociedade da Inglaterra, gerando uma curiosa reação epistolar aos jornais daquele país. No primeiro caso, a carta que oferece uma solução do mistério de um homem que aparece morto em um vagão de trem chega ao Daily Gazette com a autoria de um “famoso investigador criminal”; no segundo, o periódico a receber a correspondência é o Times, de Londres, e o remetente é descrito como “um lógico amador de alguma fama à época”, que especula sobre como pode ter desaparecido todo um trem, com sua locomotiva e demais carros. Em ambos os casos, mesmo sem ter o nome explicitamente citado, parece ser bastante elementar a identidade da mão que assina tais cartas. Em um dos casos, até mesmo um famoso bordão sherlockiano é citado.

Outras duas narrativas criadas por Arthur Conan Doyle são breves autoparódias do método dedutivo tão bem representado por ele na figura de Sherlock Holmes. O fato de tais minicontos não serem incluídos oficialmente no Cânone me faz pensar que falta humor entre os depositários do espólio. Tão interessantes e engraçadas quanto as próprias histórias em si são os bastidores de sua publicação. “Bazar no Campus” foi escrita pelo médico para ajudar sua antiga universidade, a de Edinburgh, a conseguir fundos para ampliação do campo de críquete, esporte do qual ele era um entusiasta. O texto curto foi publicado na revista The Student, de 1896, editada pelos alunos daquela universidade. O conto se resume a uma conversa na mesa do café da manhã do 221-B, entre o Grande Detive e seu fiel companheiro, John Watson, que aqui, mais do que nunca, faz às vezes de alter ego de Doyle: na breve trama é o médico ficcional quem se debate com alguma ideia para ajudar o time esportivo daquela mesma universidade. O resultado é uma comédia deliciosa e metalinguística.

Da mesma forma, o humor é o fio condutor de “O Aprendizado de Watson”, outra brevíssima aventura que se resume a um diálogo dos dois parceiros de investigações criminais durante a primeira refeição do dia. Nela, o eterno ajudante parece querer virar um pouco o jogo a seu favor e dar mostras de que aprendeu todos os detalhes da técnica dedutiva de seu mestre. O resultado, obviamente, é um tanto frustrante para Watson e uma pérola da comédia para os leitores. A curiosidade maior no conto – além de tentar entender o porquê de ele não ser enquadrado no Cânone – é o local original de sua publicação. Nada de revistas pulp ou romances de livrarias: o texto primeiramente foi escrito nas liliputianas páginas de um livro guardado na biblioteca de uma casa de bonecas. No caso, uma que pertenceu à Rainha da Inglaterra e que foi exibida ao público em 1924. Para preencher as páginas das miniaturas de livros, até então em branco, foram convidados alguns dos mais renomados escritores do reino. Entre eles, o pai literário de Holmes e Watson, que retomou à interação com os personagens quase dez anos após a publicação do último romance canônico com aquela dupla (e pouco anterior àquele que é considerado o último conto oficial “O velho solar de Shoscombe”, publicado menos de três anos antes da morte do escritor, na Strand Magazine).

Sendo assim, vale lembrar aos mais renitentes leitores das aventuras detetivescas de Sherlock Holmes por sir Arthur Conan Doyle que o velho chavão de que só são válidas as histórias publicadas entre Um Estudo em Vermelho e O Vale do Terror só os faz deixar de conhecer material de qualidade dando continuidade às aventuras canônicas. E pior, levado a ferro e fogo, faz com que eles percam aventuras de autoria do próprio criador com sua criatura mais famosa. E isso não é nada lógico, meus caros.

0 Comments

  1. Romeu Martins disse:

    Opa, Allan. Não é difícil encontrar uma versão de bolso de Aventuras inéditas de Sherlock Holmes que foi editada no Brasil pela L&PM. E também não deve demorar muito para a Draco lançar Sherlock Holmes – Aventuras Secretas.

    Abraço!

  2. Allan disse:

    Sou muito fã do Mestre Doyle. Na minha adolescência tive a sorte de ler todos as aventuras do Sherlock. Agora sei, com muito prazer, quase todas.

    Até hoje, quando o tempo está nublado, me imagino andando nas ruas da Londres vitoriana.

    Obrigado pelas deliciosas informações.

    Agora é caçar esses tesouros!