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Vikings: um relato de guerra

Muitas vezes vemos em filmes e séries as batalhas exibidas de maneira “romanceada”, com trocas eternas de golpes, com constantes atos de heroísmo e com mortes singelas até – sim, você sabe do que estou falando…

Mas isso é apenas uma licença poética. É feito com exclusivo foco no entretenimento.

A guerra é suja.

A batalha é barulhenta, fedorenta e, claro, apavorante.

Mesmo os mais bravos e experimentados combatentes não ficavam apáticos frente ao inimigo. Ouvir um exército marchar, os cascos dos cavalos fazendo a terra tremer, as cornetas e os gritos (muitos de desespero) devia ser uma sensação aterradora.

Prefiro me manter longe, apenas escrevendo esses relatos!

Matilha

Imagine o cenário: você é um jovem que nunca havia saído dos arredores da fazenda onde mora (no mundo nórdico, fazenda era uma pequena porção de terra onde as famílias tiravam o seu sustento e, do que sobrasse, um pouco de dinheiro. Era mais parecida com os nossos “sítios”) e foi se juntar aos guerreiros do Jarl (um rico senhor de terras / guerreiro) que deu essas terras ao seu pai. Sua família era juramentada a ele.

Muitos dos que já estavam agrupados na praia tinham os corpos cobertos de cicatrizes e marcas de antigos ferimentos (dentes quebrados, dedos faltando, órbitas vazias). Outros eram tão ou mais novos que você. E estavam apavorados, mas se continham ao máximo para evitar virar chacota dos mais velhos.

– Que braços finos, filho! – Olaf mordeu um naco do peixe defumado. – A minha mulher tem mais músculos que você.

               – Esse nunca deve ter segurado o cabo de um machado – Ivar afiava a lâmina da sua espada. – O máximo que faz é polir o cabo da sua adaga todas as noites!

               – Pelo menos o meu cabo ainda é bem duro…

               – Moleque petulante! – Ivar sorriu. – Gostei de você!

Todos aqueles que se juntaram ao redor da grande fogueira riam, e o cheiro azedo do álcool exalado pelas bocas e peles podia ser sentido de longe.

Poucos trajavam cotas de malhas ou possuíam elmos. A maioria usava peitorais de couro curtido (com ou sem o reforço de metal) – bem resistentes, aliás –, ou apenas suas roupas comuns. 

As espadas também eram restritas aos mais ricos ou àqueles que haviam matado o portador de uma. Havia ainda homens e mercenários que eram equipados pelo Jarl.

Boas espadas não eram simples de fazer, por isso eram caras. Veja que interessante esse vídeo sobre como era produzido o ferro naquela época.

Muitos iam à guerra portando instrumentos agrícolas como podões, garfos e foices. Ou armas que também tinham usos diversos, como machados e lanças. Eram consideradas menos nobres, contudo eram tão letais quanto uma boa espada.

A habilidade do guerreiro contava bastante. E, claro, o quanto ele era agraciado pelos Deuses.

Em algum lugar longe de casa

Você embarcava em um dos navios-dragão, conhecido como longship, langskip ou langskib, dependendo da origem (e posteriormente como drakkar). Os menores levavam aproximadamente quarenta guerreiros, os dos mais poderosos, maiores, carregavam cerca de cem (alguns estudos atestam até mais).

Outros navios de cascos mais largos, usados para transportar mercadorias, eram convocados para levar os cavalos e equipamentos dos senhores que uniriam os seus estandartes ao do Jarl. Os pobres escudeiros se espremiam entre os animais evitando escorregar na bosta e no mijo, que se acumulavam.

Quarenta longships ponteavam a costa, alguns já distantes, as velas quadradas desfraldadas e estufadas pelo vento. Viam-se os cada vez menores os traços e as listras pintadas em vermelho, azul ou verde. A Deusa Rán abençoara aquela jornada. Aceitara os sacrifícios que lhe foram ofertados.

A viagem pelo mar podia durar meio dia ou muitos! Distância e clima eram os principais fatores, contudo, imagine se localizar na imensidão azul sem GPS! E, muitas vezes, sem pontos de referência, devido ao céu encoberto. Os navegadores mais experientes sabiam se guiar bem, conseguiam ler as estrelas e o trajeto da Deusa Sól pelo céu. E faziam uso de ferramentas como a Pedra do Sol.

Entretanto, alguns se perdiam. Engolidos por tempestades inesperadas ou à deriva sem água e sem comida.

Dessa vez, os quarenta navios chegaram intactos à costa da Nortúmbria, um dos reinos do território que viria a se tornar a Inglaterra. Contudo, a jornada ainda estava só no começo. Vocês precisariam marchar por três dias até se juntar às forças nórdicas que se bateriam contra os saxões mais ao Sul, nos arredores de Derby.

Cena da HQ Vikings: Noite em Valhala

Você e os cerca de novecentos homens, seus companheiros de jornada, iam a pé. Na verdade, apenas uns setecentos e cinquenta, pois os demais cavalgavam, mas sem forçar o trote. Afinal, precisavam dos seus animais o mais “inteiros” possível.

Você está eufórico! Passa por terras desconhecidas e incrivelmente verdes, ao contrário da fazenda de chão pedregoso da sua família. E quando vê as pessoas, ao longe, fazendo um sinal estranho com as mãos enquanto vocês passam, o sorriso brota no seu rosto.

               – É o tal sinal da cruz, fedelho. – Ivar guiava a égua pelas rédeas. – Eles fazem isso quando estão com medo.

               – Igual quando a gente toca no Mjölnir no peito?

               – Eu devia cortar a sua cabeça, moleque – Ivar inspirou profundamente. – Mas, sim. Esse é o sinal para o deus Pregado deles.

Dois dias passam monótonos.

Você está com os pés doendo, faminto por causa da parca ração durante a marcha: bocados de pão, queijo, peixe e toucinho defumado e goles contidos de cerveja aguada. Não é fácil alimentar tantos homens, ainda mais viajando por terras já saqueadas. Sorte dos cavalos, que têm pastagem farta em qualquer parada.

A chuva fina gela os ossos, e até mesmo o fogo está tímido por causa da madeira molhada. Alguns sofrem de diarreia. Outros tossem e escarram sem parar. Você os observa, tremendo, contendo a vontade de beber toda a sua cerveja. Ela vai ser a sua companheira nessa noite fria.

               – Durma, se puder. – Wulf, amigo do seu pai e habilidoso ferreiro, rosna debaixo da manta grossa de lã, bem trançada e impermeável. – Amanhã nos juntamos ao exército principal. E vamos matar esses bostas de bode.

Você assente.

Mas não prega os olhos.

Amanhece sem chuva. Mas o Sol não surge. Aliás, você não o viu desde que desembarcou.

– Merda de dia! – Wulf escarra. – Odeio lutar com as roupas molhadas.

– É só aprender a controlar a bexiga. – Ivar se aproxima, montado em sua égua, mas logo segue adiante para se juntar aos outros cavaleiros.

– Filho de uma foca vesga! – Wulf elogia, mas o amigo já não escuta.

Você engole o riso e se arrasta pelo meio dia de marcha que resta. Então, boquiaberto, depois de subir uma pequena colina, você vê o exército dos nórdicos. Milhares de homens! Dezenas de estandartes. E faz parte dessa magnífica força.

Por Odin!

Cena da HQ Vikings: Noite em Valhala

A emoção – pelo menos essa – dura pouco. As cornetas de chifre são tocadas e os tambores ecoam pela planície lamacenta. Então cada grupo segue o seu líder, e vocês avançam. A fadiga dá lugar ao formigamento nas mãos e nos pés e à respiração acelerada.

Os saxões esperam à frente de um bosque. E o seu exército é tão ou mais numeroso que o dos nórdicos. Exibem seus próprios brasões, escudos e armas, muito semelhantes aos dos seus.  A única diferença é que homens tonsurados, vestidos de preto, rezam segurando a tal cruz.

               – Por Deus e São Jorge, matem esses pagãos imundos e terão todos os pecados perdoados! – um padre velhote de pele parecida com a casca de um olmo vocifera, a baba escorrendo pelo canto da boca. – Vocês são o exército de Cristo. Defendam o rei, seus lares e suas terras!

Os saxões berram, ensandecidos, mesmo aqueles que não possuem um palmo de terra sequer para defender. Então o rei e a sua guarda pessoal instigam os seus cavalos e partem. Assim como os senhores da guerra pelos quais você luta avançam aos berros: Odin! Odin!

Logo os dois exércitos se põem em marcha. E você segue a onda de homens cheirando a álcool e a suor. Você sente suas tripas se liquefazerem e as pernas perderem a firmeza. Toca seu pingente de martelo e segue – mesmo porque não há como voltar, homens atrás de você o empurram como uma boiada enfurecida.

Todos querem alegrar os Deuses.

Todos querem um butim farto.

Ou quem sabe a glória de morrer com honra e cear no Valhala!

Você ouve os berros de fúria e dor. Você ouve o som do metal batendo na madeira e quebrando ossos. Você ouve o pranto dos feridos. Mas ainda não consegue enxergar direito, exceto pelos homens caindo dos cavalos e as pontas das lanças apontadas para o céu.

Lá adiante, a linha de frente da parede de escudos sob o comando do Jarl, do seu senhor, já se embate com os saxões, que também atacam com ferocidade. Os primeiros nórdicos começam a tombar e logo são substituídos por aqueles que estão atrás.

Você já treinou isso algumas vezes. Você já levou muitas pancadas de Wulf e do seu pai – que não pode mais lutar por ter perdido uma das pernas ao ser pisoteado por um cavalo. O ferimento começou a feder e o ferreiro amputou-a com uma machadada precisa.

Só há mais duas fileiras de homens à sua frente. E você consegue enxergar o rosto dos saxões. Uns escorrem ódio, outros têm a máscara do medo.

E há aqueles de quem emana a agonia por sentir o aço nas vísceras, perfurando órgãos, talhando ossos.

Você aperta com força o cabo do seu machado e a haste de couro do seu escudo e tenta não tremer. O cheiro de mijo e merda ofende as narinas, e o sangue borrifa como as ondas quando encontram as rochas das escarpas.

Você sente saudades de casa.

Dois corvos passam voando e grasnam bem acima da sua cabeça, trazendo-o de volta à batalha.

               – Hugin e Munin! – Wulf sorri. – Odin vai saber a história dessa batalha. Lute bem, garoto! Lute e…

Uma lança perfura a garganta do ferreiro, que arregala os olhos e tomba, tentando, em vão, conter o sangramento.

Você olha para baixo, o ar fugindo do peito, vendo Wulf gorgolejar uma baba avermelhada e se debater como um girino retirado da poça.

Wulf está morrendo e você não pode fazer nada.

Algo bate forte no seu escudo e você olha para a frente. Um saxão estocou com a sua espada, mas não foi preciso o suficiente. Devia ser tão novo quanto você, o rosto com uma barba rala e o olhar assustado.

Então o medo dá lugar à fúria – ou seria apenas a vontade de sobreviver? E você baixa o seu machado com força, decepando a orelha e parte da mandíbula do infeliz. Anos cortando lenha deixaram o seu braço forte.

O saxão desfigurado solta um miado e dá um passo para trás. O peito, agora desprotegido, convida à lâmina de uma espada nórdica. A dor dele cessa.

A ponta de uma lança resvala no topo da sua cabeça descoberta. E você crava o seu machado na testa de um grandalhão cuja própria lâmina se prendera no escudo do moleque ao seu lado. O som o faz lembrar de quando você arrebentou o crânio de um leitão para retirar o cérebro, que foi cozido com legumes.

Você sorri e nem percebe que o sangue escorre do ferimento na sua cabeça, pintando o seu rosto de vermelho. Agora você já está na linha de frente, ou melhor, você luta sem a unidade da parede de escudos que se desfez. E mata aqueles que surgem à sua frente, com a ferocidade que nunca havia experimentado antes e que só ouvira contada nas histórias ao redor da fogueira.

Você honra os seus antepassados e os Deuses.

Cena da HQ Vikings: Morte ao troll

               – Odin! – você berra depois de deixar um gorducho maneta.

               – Odin! – você berra quando a lâmina do seu machado rasga o pescoço de um ruivo, fazendo o sangue dele se misturar ao seu.

               – Odin! – você avança pisando nos cadáveres de companheiros e inimigos.

E continua talhando, fendendo, rachando ossos. E só para quando a batalha termina. Quando o rei dos saxões resolve fugir para manter a sua coroa – e a sua cabeça. Ele e um bando de nobres frouxos e padres curvados que mais lembram doninhas.

Os nórdicos berram.

Os dois corvos grasnam e vão embora voando rumo ao Norte.

E você comemora junto àqueles que sobreviveram. E vê os cadáveres de Ivar, Wulf e muitos jovens que eram seus amigos, que cresceram com você.

A planície está forrada de corpos. E a relva agora tem tons avermelhados.

Os vermes daquela terra vão engordar com a carne farta.

Você inspira profundamente. E desaba no chão, exausto.

Tudo escurece.

Gostou?

Esse é o estilo narrativo do autor Eduardo Kasse. E você pode fazer parte dessa jornada ao apoiar a campanha Vikings: Morte ao troll no Catarse!

Vikings: Morte ao troll no Catarse

Chegou o momento de fazer acontecer! Você vai fazer parte dessa aventura épica. Vamos, juntos, matar o troll!

https://www.catarse.me/vikings

Por Eduardo Kasse

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