Cangaço Overdrive está entre os 10 finalistas do Prêmio Jabuti. Uau, eu não poderia estar mais feliz. Mas qual impacto de um quadrinho distópico feito no nordeste chegar ao principal prêmio de literatura do Brasil, afinal?
Quando comecei a escrever minhas primeiras histórias tinha uma aversão enorme a textos que diziam que o brasileiro deveria escrever sobre o Brasil. Estou longe de ter um perfil patriota/ufanista e sempre pensei que eu poderia escrever sobre qualquer coisa, pessoa ou lugar. Eu era mesmo um jovem bem bobo. Foi influenciado pelo sucesso do escritor André Vianco que eu comecei a escrever uma história sobre vampiros no Brasil colonial. Isso no longínquo ano de 2007. Cheguei a escrever 25% de Sebastião, um romance que eu nunca terminei. Talvez eu nunca volte a ele, mas teve algo que o “Zé Wellington doze anos mais novo” aprendeu no percurso dele: tinha um sem fim de elementos que poderiam ser utilizados para contar histórias sobre o Brasil. E veja bem, este ZW12AMN (abreviei aqui para facilitar) não tinha nem lido os livros do Vianco na época (o que é um erro grosseiro para quem quer fazer parte do mercado de um país). E imagina se o ZW12AMN soubesse que se faz Fantasismo (esse termo bacana defendido pelo Bruno Mantagrano e pelo Enéias Tavares) desde 1899, com a cearense Emília de Freitas e sua A rainha do ignoto?
Depois dessa experiência, eu voltaria mais vezes ao fantástico brasileiro (como em uma das minhas primeiras HQs com um detetive sobrenatural e um conto sobre zumbis no sertão). Mas a experiência mais legal que eu teria escrevendo sobre o Brasil/Nordeste viria mesmo com Cangaço Overdrive. O quadrinho surgiu de um convite do Walter Geovani para fazer uma história em quadrinhos sobre cangaço. Logo nas primeiras imersões no tema, me vi em diversos questionamentos sobre quem eu sou e o que eu escrevo e sobre a importância dessa minha construção como luta política.
Não demorou muito para eu perceber que falar sobre o nordeste exigia buscar mais sobre esse lugar onde eu nasci. Que mesmo tendo vivido toda a minha vida aqui, me faltavam elementos para contar essa história. Talvez eu soubesse mais sobre a geografia do Sonhar de Sandman do que sobre a relação da minha cidade com o Rio Acaraú. Quem ganha com o afastamento do nordestino (e do brasileiro) de suas raízes?
A relação do Ceará, com o cangaço é estranha. Meu estado está longe de ser o mais atravessado por cangaceiros, ainda que tenham havido visitas ilustres, como a reunião entre Lampião e o Padre Cícero e o dia em que o grupo do rei do cangaço se refugiou em Limoeiro do Norte após uma humilhação em Mossoró (este último a razão do interesse do Geovani pelo tema). Mesmo assim, embora os berços mais conhecidos do cangaço sejam o norte da Bahia, Sergipe, Alagoas e Paraíba (e há ainda quem fale de remanescentes da Balaiada no Maranhão como os primeiros cangaceiros), poucos estado no nordeste utilizam tanto elementos do cangaço como o Ceará.
Provavelmente isso aconteceu por que o cangaceiro se tornou um estereótipo típico desse nordeste do final do século XIX e início do século XX.
Diante desse cenário, é incrível ver que Cangaço Overdrive seja meu trabalho mais exitoso e mais comentado até o momento. E uma das coisas que mais me espantou é que ele foi bem recebido tanto no nordeste quanto fora dele. Eu poderia me gabar aqui dizendo que isto é o fruto de uma evolução pessoal como roteirista e do excelente trabalho do resto da equipe (e é também), mas quando estou num evento e vejo uma pessoa atraída pela maravilhosa capa do Daniel Canedo sem nunca ter ouvido falar dos artistas envolvidos, entendo que tive uma grande ajuda da temática. E não é só o cangaço que traz essa fascinação. Vejam os casos exitosos do Contos dos Orixás, do Hugo Canuto, e da saga Araruama, do Ian Fraser.
Você que escreve deve estar pensando em começar agora mesmo um trabalho sobre cangaço, ou mesmo sobre folclore ou ainda sobre índios no Brasil ou religiões de matriz afrobrasileira. Calma lá.
Mesmo com mais de 30 anos de Ceará, precisei sentar e estudar antes de escrever sobre ele. Já tinha aprendido a duras penas, especialmente quando escrevi o primeiro volume de Steampunk Ladies, que escrever fora do seu lugar de fala é delicado. Esse é um dos pontos mais importantes do manifesto do Sertãopunk, movimento que cresceu na internet nas últimas semanas. Nossa imagem como nordestinos foi desgastada no decorrer desses mais de 500 anos de Brasil. Fomos reduzidos ao estereótipo dos cangageiros. Ou pior ainda: a alívios cômicos. Pense bem na quantidade de personagens estereotipados que já surgiram novelas da Rede Globo. Isso tem impactos. Esses personagens normalmente são escritos por não nordestinos, utilizando aquelas coisas que já estão lá no fundo da cabeça deles. Sem contar a questão da apropriação cultural, quando alguém de fora do nordeste impossibilita que um nordestino ocupe aquele espaço para contar sua própria história. Era um ciclo sem fim. Até agora.
Os textos sobre o Sertãopunk me fizeram refletir muito, até mesmo me fazendo pensar sobre como eu mesmo represento o nordeste. Tem alguns erros apontados nos textos seminais da G.G. Diniz, do Alan de Sá e do Alec Silva que eu mesmo cometi. Da mesma forma, o nordeste é um negócio tão absurdo, que tem coisas que estão em alguns desses textos com as quais não me identifico, como a críticas deles sobre utilizar a seca como pano de fundo. Mas como dizem por aí, o Nordeste é um país, então aglutinar questões de identificação cultural é bem complexo, ainda que necessário. Olhando só para o Ceará, há uma diferença absurda entre o norte e o sul do estado, em termos de sotaque, tradições, expressões típicas etc. E fala aqui o filho de uma mãe do norte do Ceará (Sobral) com um pai do sul do Ceará (Milagres). Mas a essência e o pensamento que orientou a discussão sobre o Sertãopunk me representam muito. É uma questão de garantir nosso território, como Rosa e Cotiara defendem o Morro do Preá em Cangaço Overdrive. É uma treta que vale muito a pena.
Levar o cyberpunk para o nordeste é uma questão de sobrevivência. Taí Bacurau, filme do Kleber Mendonça Filho, que não me deixa mentir. Se no Brasil inteiro as pessoas combatem o desgoverno e o retrocesso atual, imagina no Nordeste. Vivemos à beira da distopia desde o quê… o descobrimento do Brasil? Cangaço Overdrive está acontecendo agora mesmo em alguma terra indígena, periferia ou longe das grandes capitais.
O caldeirão que criou o cyberpunk na década de 80 está queimando aqui mesmo no Brasil. E as minorias seguem sendo o prato principal, como era na época do Cangaço.