Meu conto (ou noveleta) para Duendes, “O Verde e o Negro”, é a nona contribuição por seleção que escrevo para as antologias da Draco. Tão logo a editora do dragão lançou o desafio de uma antologia com tons sombrios e a temática do Povo Pequeno, organizada pela Ana Lúcia Merege, comecei a imaginar a história como uma espécie de fusão entre mitos e cultura brasileira com a de outros povos, recurso recorrente em diversos de meus trabalhos. Duendes é uma expressão que cabe, genericamente, em muitas definições de pequenas criaturas mágicas, apesar de sua específica origem céltica e nórdica. E tão logo comecei a pensar no que escrever, estava decidido a embarcar nela a partir da nossa própria versão tupiniquim de “duende”, o Saci-Pererê. Minhas influências mais imediatas foram com Monteiro Lobato e sua obra O Saci, mas também a premiada série A Bandeira do Elefante e da Arara, do texano-gaúcho Christopher Kastensmidt, onde o Saci-Pererê e o folclore brasileiros são protagonistas.
Definido o Saci, também queria um duende “tradicional” irlandês para fazer uma ponte entre Brasil e Irlanda, ou seja, o “verde” do “negro”. Não desejava, entretanto, usar o “leprechaun”, quase um “operário” do mundo das fadas fabricando sapatos de orvalho, e optei pela pouco conhecida figura do “cluricaun”, uma espécie de duende das adegas com tudo que de divertido (e subversivo) isso poderia trazer.
Pesquisando, montei o cenário que funcionaria de pano de fundo entre Brasil e Irlanda; descobri que durante a Independência mercenários irlandeses serviram no Brasil; que a Grande Fome dizimou a Irlanda, provocando uma emigração em massa, principalmente para os Estados Unidos, mas também para o Brasil. Assim, eu tinha o clima sombrio do realismo contrapondo as criaturas fantásticas do conto: da fome na Irlanda a um Brasil mergulhado nas trevas da escuridão e febre amarela, na época em que se passa a história, durante o reinado de Dom Pedro II. Sempre gostei desse período, inclusive tendo escrito várias histórias alternativas de ficção científica no Império, como em Dieselpunk e Vaporpunk 2.
Uma vez definido o leprechaun das adegas, Seán Óg Ó Súilleabháin e seu comparsa humano, Shane O’Ryan, devidamente ligado a ele pelo bom e velho whiskey irlandês, tratei de trazê-los ao Império do Brasil, atraídos pela busca de um mítico lugar: Hy-Brazil, a Terra Afortunada. Fugindo das mazelas da Ilha Esmeralda e de uma cada vez mais fugidia Terra das Fadas, esperavam encontrar a redenção no Hy-Brazil, que deu nome ao país (sim, sei que tem a história contada na escola do tal “pau-brasil”, mas eu prefiro a versão de que nosso nome veio da mítica região cujos mapas antigos já marcavam antes do Descobrimento).
Uma vez no Rio de Janeiro, cidade assolada pela febre amarela e a violência (coisas que não acontecem mais…) o pesquisador irlandês e seu duende de bolso procuraram pela Pedra da Gávea, o maior bloco de rocha sólida do mundo e que, segundo lendas e misteriosas inscrições que alguns acreditam ser obra de navegantes fenícios que aqui teriam desembarcado, seria passagem para vários reinos míticos, entre eles a lendária Hy-Brazil. Mas sem a malandragem carioca e com a pouca sorte irlandesa que lhes restara, os dois acabam se metendo em encrencas e salvos por um garoto, escravo fugitivo, Chiquinho, que se encanta com o “homenzinho verde” e os leva para a Floresta da Tijuca, onde fica a Pedra.
Na pesquisa, descobri que durante o reinado de Pedro II, a floresta contava não apenas com fazendas de café com escravos mas até, por consequência, com quilombos, de onde viera o menino. E que as fazendas foram aos poucos sendo retiradas para preservar os recursos hídricos e a floresta, por ordem do imperador (palmas para Pedro II…). Enquanto acampavam numa fazenda em ruínas, os três foram aprisionados por capitães do mato, mas acabam resgatados pela aparição de um Sacy, aliado a um grupo de quilombolas liderados por Dandara, uma valente guerreira protegida de Iemanjá. Ela os guia até a Pedra, cuja passagem ocultava, do “Outro Lado”, o Quilombo da Floresta da Tijuca, comandada pela ialorixá Dona Bibiana. Ela sabe, no entanto, que um enorme perigo se levanta contra o Quilombo com a chegada dos estrangeiros até a Passagem.
Uma batalha épica pela posse do poder mágico além da Pedra se dá entre duas forças opostas, em pleno coração da floresta. Das tumbas se levantam mortos-vivos despertos por um poderoso druida, que enfrentarão a resistência das criaturas do folclore brasileiro.
“O Verde e o Negro” poderia ser definido como uma fantasia sombria que faz uso de uma espécie de “sincretismo” entre os mitos de diversas culturas – lembrando que os mitos de uns foram (ou ainda são) a religião de outros. É muito tênue a linha que separa a crença mítica da fé. Para a conceituação desse mundo mágico e sobrenatural, parti de um princípio (explorado por muitos autores) segundo o qual, a força ou a existência de uma entidade mágica ou sobrenatural – ou mesmo um deus – é proporcional ao seu número de crentes ou adoradores (como em Deuses Americanos, do Neil Gaiman, entre outros). Também a forma como eles se apresentam diante de seus fiéis varia, e o próprio Sacy é um bom exemplo; embora o vejamos em sua forma clássica, a de um negrinho de uma perna só, com barrete e pito, voando num redemoinho enquanto faz suas traquinadas ou proezas, muitas vezes sombrias, ele próprio lembra das suas origens indígenas no sul, quando era chamado de Caa Cy Perereg, um índio de cabelos vermelhos que se divertia fazendo nós nas crinas dos cavalos. Sobrenatural, como o cluricaun, o Sacy luta pela própria existência. Mas somente o futuro e a fé dirão o destino do Sacy e de outros seres do folclore brasileiro, muitos dos quais também surgem eventualmente no conto. Se estarão vivos em nossas lembranças ou apenas nos contos folclóricos, dependerá de nós.
Quanto aos mitos nórdicos e célticos, na Europa de hoje temos um movimento de renascença de crenças pagãs sendo retiradas de seu papel de pura mitologia e retornando, talvez, ao de religião novamente.
Quem sabe o Verde e o Negro sejam resgatados do limbo da Terra das Fadas e circulem outra vez no mundo dos mortais.
O Reino Invisível sempre esteve perto de nós. Além dos círculos de pedra, no coração das florestas, em dimensões das quais nos separa uma frágil barreira, um povo muito antigo nos espreita com olhos cheios de paixão, curiosidade, sabedoria – mas também inveja e maldade. Seu universo é cruel e violento, repleto de traição, vingança e crianças roubadas. E basta um rápido olhar para os contos tradicionais para saber que os duendes não são as criaturinhas adoráveis que as versões modernas fazem parecer.
Você pode pisar num círculo de trevos ou cogumelos. Pode fiar uma meada de lã. Ou pode participar do novo projeto da Draco no Catarse. De qualquer jeito, prepare-se: uma vez que tenha entrado em seus domínios, os duendes não vão te largar, e você talvez só consiga voltar de lá daqui a muito tempo. Pelo menos o tempo que levar para ler este livro até o fim.