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RPG e o Universo Athelgard de Ana Lúcia Merege

Por Liège Báccaro Toledo – Mestre em Estudos da Linguagem, professora, escritora e RPGista.

mapa_castelo-webQuem já leu a trilogia Athelgard (ou mesmo os contos passados no mesmo cenário) sabe da riqueza do mundo criado pela Ana Lúcia Merege. Temos regiões, culturas, crenças e povos diferentes, e toda essa diversidade é muito bem representada pela galeria de personagens da autora. Criar um mundo novo que realmente nos passe a ideia de que há ali uma vida própria, um universo cheio de histórias em cada um de seus cantos, é uma tarefa dificílima. Digo isso por experiência própria; às vezes me arrisco a escrever e também amo fazer outra coisa que envolve a construção de mundos: jogar RPG.

Sendo assim, fica difícil não imaginar como Athelgard se sairia na mesa de jogo. O mundo da Ana daria um cenário de campanha fantástico. Eu não sei que personagem eu faria primeiro: uma aluna da escola de magia de Vrindavahn, com suas sete alas coloridas, uma pupila de uma das escolas bárdicas de Kalket (tradição de Madrath, por favor!), uma aprendiz de xamã da Floresta dos Teixos (Casa do Lobo ou da Lontra? Oh, dúvida cruel!), uma guerreira de Scyllix… será que me sairia bem como uma aluna da Escola de Artes da Cura em Riverast? Se bem que precisaria de uma indicação na maioria desses casos…

A minha brincadeira (que não é tão brincadeira assim) já demonstra o quanto Athelgard é um mundo atrativo e rico para quem gosta de se aventurar com dados e planilhas (ou outras coisas). Eu sou uma jogadora apaixonada de D&D, portanto, o que vou falar aqui se refere ao sistema dos calabouços e dragões.

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Elfos de Athelgard. Regiões diferentes, diferentes usos para a Magia.

Sobre raças: temos humanos, elfos e meio elfos/meio humanos, mas não anões, halflings etc. A diversidade enorme fica por conta do mundo bem criado, que nos daria a possibilidade de jogar com personagens extremamente diferentes entre si. A distância entre o xamã Zendak e o mago Hillias é enorme, por exemplo, e ambos são elfos. Mas Hillias pertence a uma casa nobre (como bem demonstra sua safira pendurada na orelha) e Zendak é praticamente um chefe tribal. Uma coisa bacana de Athelgard é que os elfos são tão diversos quanto os humanos. Dependendo da região, o personagem teria características próprias e modos de agir e de pensar que combinem com seu entorno (dá até para fazer um bárbaro das Terras Geladas…). Os choques culturais dão plots maravilhosos, e Athelgard é um prato cheio para isso. Por exemplo, Anna de Bryke, ao se tornar Mestra de Sagas em Vrindavahn, traz toda uma bagagem cultural diferente, vinda de sua convivência com os elfos do povoado de Bryke e da Floresta dos Teixos. Por isso mesmo ela entra em conflito com a elfa nobre Thalia, que não concorda com sua metodologia de ensino. Explorar esse tipo de situação nos jogos é sempre uma boa ideia.

Conheça as raças:

E quanto às classes? Há possibilidade de usar todas elas dentro do cenário (só não estou muito certa quanto ao monge). Guerreiros, bárbaros, magos, feiticeiros, bardos, clérigos (embora a classe fosse “sofrer” algumas adaptações), paladinos, ladinos, druidas, rangers… dá para encaixá-las todas ao mundo de Athelgard. Vamos analisar alguns dos personagens (principais ou não) da série: Anna de Bryke, protagonista de O Castelo das Águias e de toda a série junto a Kieran, é uma barda, sem dúvidas (mas tem o seu lado ranger, a Anna dos Lobos caçadora!). Ela é uma Mestra de Sagas, gosta de contar histórias, ensina e aprende através delas, e tem uma oratória (e um poder de persuasão) tão famosa que suas peripécias acabaram chegando aos ouvidos de temíveis piratas e, mais tarde, do conselho de Scyllix. Além disso, ela se vira muito bem com o arco…

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O desfecho da trilogia.

Kieran de Scyllix, professor de Magia da Forma e Pensamento e marido de Anna, já é um personagem mais complicado de analisar. Mago? Sim, mas e o lado guerreiro? No livro, Kieran é chamado de mago, e é óbvio que ele tem uma aptidão enorme para magia, mas também é bom com a espada, e é um homem forte e resistente. Como as duas coisas podem andar juntas, eu diria que Kieran é um personagem multiclasse (se ele fosse todo elfo e nós fôssemos considerar classes de prestígio, diria que ele pode ser um Bladesinger). Em A Fonte Âmbar, Kieran ainda demonstra ter aprendido um truque de uma outra classe… mas deixemos isso para depois, pois nada de spoilers.

Falando em magia, e os druidas? Bem, o xamã Zendak, primo de Anna de Bryke, é um perfeito druida. Ele é um transmorfo (shapeshifter) e se transforma em corvo – quem joga sabe que uma das habilidades mais legais desta classe reside na possibilidade de tomar formas animais. Aliás, os seguidores do sábio Odravas, segundo o qual é preciso deixar as cidades em nome de uma vida mais simples, “na terra e junto aos filhos da terra”, dariam bons druidas ou mesmo monges, não é?

Ainda falando em magia… mas agora, magia divina… os clérigos, em Athelgard, teriam à sua disposição o Deus Único dos humanos e outras divindades baseadas na cultura nórdica. Acontece que os prestes e devotos não aparecem nos livros e contos como necessariamente ligados à cura (característica forte no D&D). Na verdade, a Arte da Cura que se assemelha à do D&D está dentro das escolas de magia, como a de Vrindavahn ou Riverast  (Sophia e Lahini, por exemplo, se dedicam à cura, mas não estão ligadas a templos ou divindades). Fiquei aqui pensando em Padraig, o garoto humano cuja magia é invocada por meio de sua devoção a Thonarr… mas eu sinceramente o classificaria mais como um paladino do que como clérigo. O maravilhoso conto Em nome de Thonarr é todo o despertar de um paladino! Me lembrando de A Voz do Sangue, será que poderíamos colocar o Preste Ivan como clérigo e Maxim da Ordem da Rosa como um paladino? Fica o questionamento (mas eu acho que sim).

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A elfa Kyara e seu amado Raymond. Em D&D, seriam uma ranger e um ladino.

Aqui cabe fazer um adendo. Os personagens do livro não foram construídos para se encaixarem em classes de RPG, é claro. Portanto, podem ter traços de várias delas, ou mesmo não se encaixar em nenhuma. Rydel, por exemplo: druida? Pelos seus votos e costumes, podia até mesmo ser um monge ligado à filosofia de Odravas. Camdell é um adivinho? E Lear, o Encanta-Dragões? Mago ilusionista com uns níveis de bardo?

Alguns são mais fáceis, mas, na maioria das vezes, queremos atribuir mais de uma classe aos personagens. Kyara, a avó de Anna, é uma caçadora hábil que facilmente identificamos como uma ranger. Quando falo em ranger, penso em Vergena, por causa de sua ligação com as águias e seu traquejo como rastreadora, mas ela poderia ganhar outras classificações. Poderia ter níveis de guerreira…

E falando em homens e mulheres de armas, Athelgard também os tem. Scyllix, a cidade mais marcial das Terras Férteis, é o lar de muitos guerreiros. Doron é um bom exemplo, e eu não poderia deixar de citar o Tammoren, um clássico guerreiro élfico e um dos meus personagens favoritos de A Fonte Âmbar. E os bárbaros? Bom, as Terras Geladas devem estar cheias deles. Será que Thorold se classifica? Ele é tão afável! Acho que está mais para um guerreiro versado na arte da navegação.

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Segundo livro da trilogia.

E falando em navegação, para representar os ladinos, quem sabe não podemos falar dos piratas de A Ilha dos Ossos, como Nestorian, ou o Bagre e o Caveira? E quanto aos feiticeiros… bem, eles seriam pessoas que têm uma aptidão mágica natural, sem necessariamente ter estudado magia. No mundo da Ana Lúcia Merege, isso se aplica a muitos personagens, incluindo o próprio Kieran, cujas habilidades foram descobertas pelo seu mestre, Mael. Mas, ao pensar em um poder mágico mais “selvagem” e descontrolado, posso vê-lo em Razek, com seu fogo interior, e no Andorinha, personagem de A Fonte Âmbar.

Para terminar, e se fôssemos encaixar alguns personagens do livro nos alinhamentos do D&D? Depois de muito pensar, diria que Anna de Bryke é neutra e boa, porque é uma personagem que preza a liberdade, mas não se importa de seguir tradições e obedecer a certos costumes. Ela está mais preocupada em fazer o bem, em última instância. Já Kieran de Scyllix me parece um personagem leal e neutro. Ele é extremamente fiel à Escola de Artes Mágicas de Vrindavahn (tanto que quase se sente “dono” dela, de vez em quando) e a Anna, o que demonstra seu lado leal; mas, por ter uma história de vida muito complicada, é um personagem casmurro, que flerta com um lado mais sombrio e escolhe tentar ser bom (ou, pelo menos, manter-se no equilíbrio).

Apesar de ainda não ter lido Um Estranho Equinócio, tenho a impressão de que Urien, o Mestre da Música do Castelo das Águias, seria um bom exemplo de personagem caótico e bom. Thalia, a professora de princípios da Magia, elfa nobre e de ar arrogante, poderia ser classificada como neutra (o true neutral do D&D). Da mesma forma, o devoto Padraig se saria muito bem com um leal e bom na planilha, ao passo que penso em Razek como um personagem caótico e neutro , com toda a sua impulsividade e a fama de aprendiz mais encrenqueiro da escola!

O Castelo das Águias, romance de Ana Lúcia Merege

Primeiro livro da trilogia

Mas nem só de personagens bons (ou apenas neutros) vive Athelgard. Os três livros principais da série contam com três tipos de vilania: Hillias , o antagonista de O Castelo das Águias, é um personagem de maldade mais “pura”, por assim dizer. Polido, belo e arrogante, o elfo vai se revelando aos poucos, demonstrando um egocentrismo ímpar e uma capacidade de usar os outros para seu próprio benefício sem medir nenhuma consequência. Ganha o título de neutro e mau. Já Nestorian, vilão de A Ilha dos Ossos, é um pirata com quem a gente até consegue simpatizar! Ele é mau, não tenham dúvidas, mas é leal à sua tripulação e segue um código, além de tratar o Bagre e o Caveira quase como filhos. É um perfeito personagem leal e mau. E em A Fonte Âmbar? O vilão do livro, o Conjurador, além de me parecer um mago com tendências necromânticas, não segue código nenhum e é inspirado e consumido pela sede de poder. Fechamos a trilogia com um antagonista caótico e mau.

Termino meu texto esperando que tenham ficado desejosos de ler a série Athelgard (para quem ainda não leu), e que resolvam se aventurar no mundo da Ana Lúcia Merege, seja lendo suas maravilhosas sagas ou rolando dados!

O mundo de Athelgard

Liège Toledo na Draco

2 Comments

  1. Liège disse:

    Muito obrigada por terem publicado meu humilde artigo, pessoal. Espero que todos gostem! Ana, seu universo é maravilhoso e eu espero ter feito justiça a ele!

  2. Ana Lúcia Merege disse:

    Não posso dizer o quanto estou feliz com esse artigo maravilhoso!!