Essa carta, quarta de uma série, foi escrita por um historiador estrangeiro sobre sua viagem por Myambe. Para conhecer todas as cartas já publicadas, clique aqui.
À excelentíssima Exarca Sofia I e aos estimados sócios da Companhia Mercantil de Valmedor,
Creio que conhecem a história de Melkat, ou pelo menos os reflexos da conquista deste reino pelo Império de Diamante décadas atrás. Imagino, no entanto, que pouco saibam sobre a cultura deste povo e o lugar de onde vieram.
Parti do Vale para Melkat em companhia de um dos Marid e seus homens, e partimos até as ruínas do que um dia foi uma cidade sagrada.
Da antiga Lugdasa, pouco restou. É claro ao andar-se pelas ruas enegrecidas pelas chamas que uma vez foi uma das joias deste lugar. Estátuas gigantescas aparentemente feitas de uma única rocha tombaram destroçadas por uma força descomunal que dá veracidade às histórias sobre um deus-vivo conquistador. Muralhas impossíveis resistem ainda, erguidas sem o uso de qualquer argamassa: pura engenharia aplicada como jamais vi sequer em Valmedor.
Mas de Lugdasa restam apenas os ossos, como um animal uma vez majestoso, morto, sua carcaça abandonada para os carniceiros que lentamente devoraram o que podiam.
Uma outra cidade cresce hoje mais ao norte, perto da costa. Sukutai parece ter sido um porto, mas dele, também pouco resta. O Imperador ordenara que fosse destruído e todos os seus engenheiros queimados na fogueira. Hoje nada maior do que barcos de pesca são permitidos na costa e, enquanto tudo parece bem para este povo tão recentemente assimilado pelo Império, sinais de resistência abundam quando olha-se nos lugares certos.
Melkat é o nome ou sobrenome de um rei, talvez mítico, que estabeleceu o controle da região séculos atrás. Segundo as lendas locais (todos os textos antigos foram confiscados pelo clero do Império), Melkat organizou as tribos selvagens que antigamente viviam por aqui graças às palavras de sua irmã, que se descobrira capaz de comunicar-se com espíritos da natureza chamados Azanzi.
Detalhes são difíceis de absorver pela questão dos nomes em Myambe: Melkat é nome e título. A cada geração os oráculos, mulheres capazes de ouvir os Azanzi através de um jogo de ossos pintados, selecionam o próximo Melkat que governará o reino de mesmo nome. Filosoficamente falando, o novo Melkat é o antigo reencarnado. No entanto, não encontrei evidência alguma de imortalidade real ou a presença de um Eterno. Claro, ausência de evidência não é evidência de ausência.
Acredito pelo que presenciei em outras terras e aprendi neste viagem que a Dinastia de Melkat cresceu apenas porque o Império de Diamante tinha sua atenção voltada para o Norte, conforme explicarei mais precisamente em relatórios futuros. Nestes poucos séculos de existência, os Melkat fortaleceram-se na península, onde desenvolveram um avançado sistema de mineração e metalurgia. Em tempos recentes os Melkat chegaram até a ensaiar suas próprias conquistas, atacando o Vale, Sokos, Dnege e até mesmo a capital do império, Jimfara. Foi exatamente este último ataque que acabou por atrair a atenção do Império de Diamante.
Cerca de setenta anos atrás o deus-vivo do Império decidiu por um fim à Dinastia de Melkat. Lugdasa foi destruída, os oráculos foram caçados e mortos e o último Melkat foi queimado vivo. Ao que se sabe, jamais reencarnou.
Centenas, se não milhares de nativos fugiram da península por mar para ilhas diversas, sendo a colônia de maior significância aquela instalada no Último Refúgio, capital da inusitada ilha-continente de Panjekanaverat onde a Companhia Mercantil tem interesses particulares. Para todos os propósitos, as favelas de Último Refúgio são tudo o que resta desta cultura devastada.
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Melkat é governada por um Zaim Mamat, um nobre que participou da guerra de conquista tantos séculos atrás. Mamat está muito velho e hoje não deseja mais lutar. Tem baixado a guarda em relação ao controle de heresias na província, especialmente desde que a maior parte do clero retirou-se para a capital. Em entrevista com o Zaim, encontrei-o desinteressado de qualquer coisa, mesmo da existência de um continente tão diferente quanto o nosso. Mamat parecia querer pouco mais do que deixado em paz para viver seus últimos anos de vida.
De tempos em tempos Zaim Mamat envia seus homens para as ruas das principais cidades da província com o intuito de prender hereges. Quando heresias não são encontradas, outras desculpas valem. Os prisioneiros são julgados e condenados em praça pública, então queimados ali mesmo. O objetivo não parece ser impor a religião do deus-vivo, mas sim satisfazer o clero.
Curiosamente esbarrei com práticas claramente heréticas ignoradas pela guarda local. O jogo de ossos religioso deu origem a uma versão de jogo de azar. Não compreendi como funciona, mas aqueles a quem perguntei explicaram que o objetivo é recolher o máximo de ossos possíveis antes que os Azanzi levem sua alma. Por sorte não vi ninguém ser morto durante as partidas, mas vi muitas moedas trocarem de mãos.
Apesar da superfície de aceitação ao domínio do Império de Diamante, é claro que ainda existe resistência em Sukutai. Filhos e netos daqueles que lutaram contra o Império demonstram claros sinais de resistência, dando a entender que existe algum tipo de organização. Talvez o Melkat esteja vivo, ou mesmo um de seus oráculos. Quem sabe?
Para a Companhia Mercantil isso pode significar um ponto de contato dentro do Império interessado em obter armas e outras mercadorias de difícil acesso.
O maior risco é a proximidade de Melkat da capital do Império, da qual falarei no próximo relatório.