Você acabou de comprar um dos mais novos lançamentos da editora Draco, “Samurais x Ninjas”. Leu as orelhas, viu o sumário, folheou as páginas, deparou-se com o conto chamado “Inexpressivo”, leu o primeiro, o segundo, o terceiro parágrafo; agora, lê o conto.
Desço, com seu corpo em meus braços, de volta ao estéril corredor de hotel de elite. Todas as paredes são revestidas com um límpido e entediante branco, sem uma irregularidade sequer. Alguns podem achá-lo elegante em sua simplicidade. Não eu. Prefiro algo mais decorado, mais característico, com personalidade. Aqui vejo apenas a entediante tendência mais recente em estética. Consigo vê-la em suas roupas, seu cabelo e sua expressão. Tudo em branco. Não demonstro meu desagrado. Meu rosto, como esse corredor, é completamente inexpressivo, mesmo cara a cara com a morte.
Não lembro como surgiu a ideia — a decisão — de narrar a história desse jeito: do ponto de vista do assassino que explica todo o acontecido ao cadáver de sua vítima, narrando e monologando sua história enquanto carrega seu corpo a um ponto de encontro específico.
Na verdade, é difícil de me lembrar como essa história surgiu, para começo de conversa. Comecemos com uma ideia — ou melhor, a ausência de uma. Não sabia muito bem o que pretendia fazer em relação ao tema da antologia, quando vi a chamada. Queria arriscar alguma coisa que, pensei, talvez não fosse feita por outra pessoa. O problema era descobrir exatamente o quê.
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Descartei um conto histórico, que nunca foi minha praia e que, achei, exigiria um nível de pesquisa e background que talvez se alongasse demais para um conto com limite de tamanho. Então surge o pano de fundo: em vez do passado, o futuro. Um mundo de estéticas, onde o transhumanismo faz as pessoas perderem a noção do real conforme elas interagem com o puro vácuo da realidade aumentada, onde as classes mais abastadas se enfeitam de branco — quem sabe coincidentemente, a cor japonesa para a morte — de cima a baixo, roupas inexpressivas sobre corpos pouco usados.
Como sabia que ninjas, menos que estereótipos, eram talvez o equivalente da época a espiões, assassinos ou mercenários, que antes de vestir preto se vestiam com o que conseguissem melhor se mesclar em um ambiente hostil, resolvi que isso seria. Um ninja no futuro. Um assassino.
Mas como deixar uma história de assassinato interessante? Como fazer daí algo literário? Minha intenção era tentar a criação de algo poético.
Entram os personagens — um algoz e uma vítima. Precisava de uma espécie de dinâmica entre os dois, precisava contrastá-los. Admito: tomei emprestado dois arquétipos de personagens de meu roomie, o Atlas Moniz, inventados e reinventados e presentes em seu projeto mais recente, uma fantasia urbana sobre caçadores de emoções encarnadas e que, considerando o teor dos personagens dos quais eu precisava em Inexpressivo, caíam como uma luva, ao ponto de eu mal perceber que estava reciclando os arquétipos até a metade da escrita do conto, numa espécie de osmose pouco intencional (obrigado, Atlas!).
Tratam-se do personagem estoico — no caso, o assassino e narrador —, que evita emoções ao máximo possível para que possa realizar seu ofício com eficiência, e do outro emocional e irascível, instável mas um tanto charmoso — a vítima — que, talvez por seu contraste, ou quem sabe por algum outro motivo, fascina o seu algoz e o impulsiona a narrar toda a sua trajetória.
Com a história e os personagens, surgiu o último elemento: a narrativa. Após ter decidido por essa dinâmica entre os personagens e esse pano de fundo de um futuro transhumanístico — em branco, tudo em branco —, como narrar essa história de um jeito melhor que um contando-a para o outro? Em um misto de primeira e segunda pessoa, o algoz monologando diretamente com a vítima — como se ela fosse o leitor.
Você provavelmente achava, até morrer, que éramos aquelas pessoas do cinema, com facas, estrelas, vestidas de preto, atuando nas sombras. O problema é, meu alvo, que sombras aqui não servem para nada.
Acabei, então, com nem tanto uma história sobre habilidades e ninjutsu, sobre épocas ou lugares, mas com a história de um relacionamento, das emoções reprimidas de um homem que é forçado a tirar a vida de outros, mesmo quando se afeiçoa a eles; a história de um jovem calado, nos primeiros degraus de sua organização, que a conta para alguém que não pode ouvir mais nada, como se a narrasse para si mesmo, como se justificasse as próprias ações para um fantasma invisível.
O resultado está no volume em suas mãos, na prateleira de sua estante, ou quem sabe ainda na loja, esperando por você. Espero que goste!
A ilustração que abre o post é de Atlas Moniz (obrigado de novo!).
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0 Comments
Eu gostei muito do seu conto, especialmente do jeito como a história foi narrada! A voz do personagem prendeu minha atenção desde a primeira linha 🙂
Oi, Aya! Agradeço pelo elogio e pela leitura!