Lúcio Manfredi é escritor é roteirista na TV Globo. Confira o Top 5 que ele preparou com referências importantes no processo de criação de Encruzilhada:
Definir minhas cinco maiores influências, de um modo geral, é meio complicado, porque eu sou meio que uma esponja: passei a vida absorvendo influências dos mais variados autores, das mais diversas correntes, de Jung ao budismo, do taoismo a Nietzsche, com algum Deleuze e Derrida de permeio.
Nos exemplos que eu acabei de dar, mencionei principalmente as influências filosóficas de propósito, para poder privilegiar na lista as influências literárias. E aqui também, vou ter que deixar um bocado de gente boa de fora, já que, de certa forma, fui influenciado por absolutamente tudo o que eu li, e já li coisa pra caramba nesta vida.
O critério que eu usei para chegar a este top 5 foi o de dar preferência aos autores que deixaram uma marca mais visível em Encruzilhada, seja no estilo, seja nas temáticas.
Ao mesmo tempo em que uma lista de autores que me influenciaram pode ser potencialmente interminável, ela não seria completa se não começasse por Philip K. Dick, o William Blake da ficção científica.
Meu tema central é o mesmo que o dele, a natureza da realidade, e foi com Philip K. Dick que eu aprendi como problematizar essa questão do ponto de vista literário. Ao contrário de mim, Dick aspirava a ser um autor mainstream realista, estudou com afinco os grandes autores do realismo americano, como Upton Sinclair, John dos Passos, Theodore Dreiser, e aprendeu com eles as técnicas da narrativa realista.
Mas a grande sacada de Dick foi subverter essas técnicas. Como numa narrativa realista convencional, Dick constrói um mundo verossímil, que o leitor é convidado a habitar por meio da suspensão voluntária da descrença. Mas, assim que ele põe os pés nesse mundo, Dick puxa o tapete sob os pés do leitor, fazendo-o mergulhar numa vertigem ontológica onde tudo o que é sólido desmancha no ar. Eu me apoio menos do que Dick nas técnicas da narrativa realista, mas tentei recriar um pouco dessa vertigem ontológica em Encruzilhada.
Como Philip K. Dick, Pynchon é um mestre da paranoia, e outra influência grande pra mim, menos pela exploração das teorias conspiratórias, que são a matéria-prima do autor mas não aparecem muito nos meus textos, e mais pela sensação angustiante que os protagonistas pynchonianos frequentemente têm, de não saberem se estão ou não enlouquecendo. No caso específico de Encruzilhada, a referência maior seria O Leilão do Lote 49, de Pynchon, em que, como o meu Max, Oedipa Maas não sabe se está delirando ou sendo perseguida por forças misteriosas. Ou talvez as duas coisas. Ou nenhuma delas.
Talvez o maior estilista contemporâneo, pelo menos na língua inglesa, Don DeLillo me ensinou a combinar a função utilitária da linguagem, que é contar uma história, com a função poética, que leva em conta a forma, o ritmo das frases, não como beletrismo ou exibicionismo estético, mas para fazer com que a própria estrutura do texto reproduza os movimentos internos da consciência dos personagens – com sorte, recriando esses movimentos na cabeça do leitor.
De certa forma, Burroughs é uma espécie de síntese dos outros autores que eu citei até aqui. Como Philip K. Dick, ele escreve sobre realidades alucinatórias, que se constróem e desconstróem diante dos olhos do leitor; como Pynchon, fala de conspirações cósmicas, que atravessam o tempo e o espaço; como DeLillo, criou um estilo que, apesar de bem diferente, também passa por cima da linha divisória entre narrativa e poesia. Além disso, Burroughs faz um uso extensivo da escrita automática, uma técnica básica do surrealismo, que eu comecei a praticar na adolescência, como contista. Mas foi com Burroughs que eu aprendi a levar essa técnica para o romance.
O tema central de Cortázar é a maneira insidiosa com que o fantástico invade e subverte a nossa realidade pretensamente racional. De certa forma, o Max de Encruzilhada faz o movimento contrário, é ele que, ao pular a janela da casa misteriosa, logo no primeiro capítulo, abandona a realidade consensual para mergulhar num mundo fantástico. Mas, como nos contos de Cortázar, o resultado é a obliteração da fronteira mesma entre o real e o fantástico, em benefício de uma visão da realidade menos rígida, mais fluída, que é o que eu tentei simbolizar com a cena final do romance.
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