Abrindo o coração ao companheiro de viagem, Fra Mauro contou que via seu trabalho como uma grande cruz a ser carregada. A rotina de prazos apertados, noites mal dormidas e dias de trabalho intenso e repetitivo pareciam deixá-lo inerte a tudo mais ao redor. Apesar do cansaço físico que esse ritmo lhe causava, não eram as reclamações do corpo que o incomodavam, mas as do espírito.
Sua arte reduzira-se àquilo: entregar seu trabalho em prazos determinados, frequentemente impossíveis de honrar. Por diversas vezes imaginara-se batendo à porta do Abade, pedindo desligamento da sua função. Que fosse passada a outro, que a executaria melhor e com mais paixão.
Mas faltava-lhe coragem para mudar. Quando via seu reflexo, Fra Mauro, monge residente do mosteiro de San Michele di Murano na laguna de Veneza, via o que era: um simples copista das obras dos outros.
Sempre verdadeiras a quem quer que fossem dirigidas, suas palavras não foram esquecidas pelo atento ouvinte ao seu lado. Apesar da estoica fé em Deus, Fra Mauro estava sem nenhuma em si mesmo.
É bastante óbvio, mas quando decidi que concorreria para a coletânea Dragões, a primeira coisa que fiz foi pesquisar sobre esses bichos. Eu queria entender um pouco mais dessa espécie, apesar de ter crescido cercado por eles. Eu não sabia sobre o que escreveria, nem como seria o conto, mas tinha certeza de que fugiria da representação tradicional do dragão. Não o queria entocado numa caverna, tampouco destruindo vilarejos.
Ele veio a mim na capa de um álbum do Black Sabbath, o Mob Rules, e a partir daí escrevi a primeira cena. Com ela também veio o tom religioso da história. A pesquisa, por sua vez, me levou a expressão em latim que deu nome ao conto, e como numa trilha já mapeada, mas ainda desconhecida para mim, me deparei com o diário de Fra Mauro. Aí eu soube quem seria o personagem principal.
E foi lendo sobre esse desconhecido homem do século XV que decidi o papel do dragão no enredo.
De tudo que escrevi, Hc Svnt Dracones é a história que mais se parece comigo, com a minha vida. Não, não tenho o mesmo ofício que Fra Mauro, apesar de nossas profissões estarem de alguma forma relacionadas; e também não sou monge. Contudo, por mais que tenha negado isso para mim mesmo por muito tempo, a verdade é que há muito dele em mim, talvez mais do que eu possa (ou queira) admitir.
E o que nós compartilhamos, além de alguns medos, é a jornada. Nós dois buscamos a mesma coisa.
Mauro, em verdade, não era lá tão diferente de muitos de nós, e seus profundos questionamentos ainda hoje são válidos. Arrisco a dizer que todos já passaram, ou ainda passam, pelo grande dilema que o aflige na história, e creio que ele mesmo, o personagem real, também se sentia igualmente aflito como a sua contraparte fictícia.
Quem nunca esteve indeciso?
Quem nunca se viu perdido, sem um mapa, tendo que escolher entre dois caminhos de destinos incertos e desconhecidos? E quando esses caminhos não são claros? E se não houver pegadas a serem seguidas… e você tiver que construir suas próprias pontes?
Esta história é dedicada a todos que já se questionaram, que já tiveram dúvidas sobre quem realmente eram.
Eu continuo à procura, na minha busca, e lhe desejo o mesmo que quero para mim: que abandone a estéril segurança da rotina, que encontre seu lugar, suas verdades, aquilo que lhe faz feliz, seu papel no mundo.
E quanto a Fra Mauro? Bem, ele passou a ver a vida com seus próprios olhos, e encontrou seu propósito colocando o mundo no papel…
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