Arthur não pôde acreditar que aquele selvagem sem armadura, brandindo uma espada emprestada dos romanos, tivesse passado incólume por sua Guarda Real e, sozinho, arrancara-o de sua cela e o atirara no chão sangrento do campo de batalha. Não fosse pela intervenção pressurosa de Sir Kay, a espada do bárbaro teria encontrado a sua garganta.
O golpe de Kay atingira o inimigo no alto da cabeça, partindo como a uma laranja o frágil capacete de couro e ferro batido. O petulante terminara prostrado na lama, e Arthur e seus cavaleiros foram logo envolvidos pelo clamor da batalha, tentando recolocar o rei em sua montaria e afastá-lo do mêllée.
Horas mais tarde, a batalha vencida e os inimigos desbandados, Arthur Pendragon voltou-se para o caso do único homem que, em anos, conseguira colocá-lo ao chão. Um simples soldado, um camponês recrutado nas montanhas. A profecia de Merlin assombrava os pensamentos do rei. “Um dia surgirá um homem sem traços de nobreza que, por sua mera existência, porá em risco a vida do Rei e a segurança do reino”, o mago havia dito.
Há um momento em Le Morte d’Arthur (1485), a longa narrativa compilada e glosada por Sir Thomas Malory no século XV, em que Malory trata da expedição punitiva do Rei Arthur à Europa continental. Ao enumerar as forças inimigas, Malory menciona tropas portuguesas: “E todos estes eram súditos de Roma e muitos mais, como Grécia, Chipre, Macedônia, Calábria, Castelândia, Portugal, com muitos milhares de espanhóis”.
É bom lembrar que se Arthur realmente existiu, viveu na Inglaterra do século V, quando os povos daquilo que seria Portugal eram conhecidos como “lusitanos”. O termo “português” é posterior à formação do Condado de Portucale, no século IX – eu até escrevi uma história de fantasia ibérica ambientada naquele momento da história do país: “A Clareira Mágica”.
De qualquer modo, aquela alusão passageira aos portugueses no livro de Malory me deu a dica para escrever um conto de fantasia arturiana que fosse também fantasia ibérica, e portanto mais próximo da nossa realidade. Na minha história, Darius, um guerreiro lusitano derruba Arthur do cavalo durante a batalha, e se torna o centro de uma disputa entre os cavaleiros de Arthur e a Fada Morgana.
Houve um momento na década de 1990 em que eu lia muita fantasia, até para ter assunto para o meu fanzine Borduna & Feitiçaria. A fantasia arturiana era uma das minhas favoritas, fã que sempre fui do Rei Arthur e dos Cavaleiros da Távola Redonda, por causa das histórias em quadrinhos do Príncipe Valente de Hal Foster. Já havia lido As Brumas de Avalon de Marion Zimmer Bradley, e também a Trilogia Merlin de Mary Stewart. Foi da leitura dos notáveis romances de Stewart que tirei a ideia de ambientar o desfecho da história no momento em que Merlin está encarcerado na Caverna de Cristal, por força da magia superior de Nimue ou Viviane, a Dama do Lago.
Acho sempre muito interessante escrever histórias em diálogo com outras tradições literárias. A oportunidade de escrever uma fantasia arturiana foi uma delícia, em particular pela possibilidade de contribuir para uma proximidade maior dessa tradição junto à literatura brasileira. Lembro que o Ciclo Arturiano é patrimônio europeu, e que a cópia da Demanda do Santo Graal guardada na Torre do Tombo é um documento muito importante dentro do ciclo, e que parte da aura arturiana está presente em muito da tradição da poesia de cordel no Nordeste – uma associação que Roberto de Mello e Souza explorou muito bem nas novelas A Tisana e Pão de Cará, que transportam situações da arturiana para o sertão.
Eu também espero que os leitores apreciem a mensagem pacifista que meu conto traz.
Quer ler esse e outros contos da coletânea Excalibur – histórias de reis, magos e távolas redondas? Acesse: http://editoradraco.com/2013/09/02/excalibur-historias-de-reis-magos-e-tavolas-redondas/ e garanta o seu exemplar!