Seis meses depois do fracasso de uma expedição à Antártica, Estevão não sabe por onde começar a resolver sua vida: a noiva o abandonou, o pai não fala com ele e o emprego improvisado não serve para pagar o condomínio do apartamento e as dívidas que se acumulam no banco. Uma expedição de busca na Bolívia não era bem sua ideia de solução, mas a proposta vem com a promessa de um bom adiantamento em dinheiro e já vai o tempo para a monotonia da cidade grande começar a enlouquecê-lo.
Para escrever o romance A última expedição, publicado pela Editora Draco em abril de 2013, Olivia Maia viajou à Bolívia e percorreu as cidades e caminhos da trama, procurando cenários e personagens e construindo a narrativa, enquanto tentava descobrir onde poderia ter se escondido o médico irlandês desaparecido naquela imensidão do altiplano. Neste TOP 5, a autora volta alguns passos para buscar as origens da sua identificação com a literatura policsial e de mistério e apresentar os livros, nem sempre policiais, que influenciaram sua escrita.
Olivia Maia: Na lista deste top 5 não estão necessariamente meus livros favoritos, embora conste um deles, por coincidência inevitável (quem adivinha?). São na verdade as referências que me fizeram de alguma forma pensar a literatura e o ato de escrever. São livros que moldaram tema, estilo, objetivos. São livros que me fizeram, em algum momento, pensar “putz, quero escrever” ou “é assim que quero escrever quando crescer”.
Como ainda não cresci (diria o namorado de mais de dois metros de altura), continuo aprendendo. Mas é que a gente precisa começar em algum lugar. Então:
1. “A droga da obediência”, de Pedro Bandeira
Não me lembro qual foi o primeiro livro, exatamente, que me fez criar esse vício, mas sei que “A droga da obediência” foi um dos primeiros. Devia ter uns onze ou doze anos. Depois disso, ia toda semana à biblioteca da escola para pegar mais um livro e devolver o anterior. Chegava e perguntava à bibliotecária se “tem alguma coisa nova?”, como se o escritor tivesse a obrigação de escrever um livro novo a cada mês, como se escrever um livro fosse o mesmo que escrever um artigo para uma revista, como se publicar um livro fosse a mesma coisa que fechar a edição de um jornal. Nunca desistia, mesmo quando comecei a desconfiar que aquele tal de Pedro Bandeira não estava mais escrevendo coisa nenhuma, aquele tratante. Levava outro livro da coleção Vagalume.
Foi o que me fez querer ler e me fez querer escrever. De certa forma, foi também o que configurou no meu inconsciente uma primeira ideia do que era literatura e mesmo que isso mudaria depois (claro que mudaria depois) algo desse primeiro contato nunca foi embora. Há nesse tipo de literatura infanto-juvenil a ideia mais explícita de uma busca, que é quase sempre uma investigação, nesse embrião mirim de policial. De certa forma, pode-se até mesmo dizer que o romance policial é o romance por excelência, pelo que há de explícito na busca das personagens.
Meus primeiros livros são mais policiais porque há, de fato, um policial, um inquérito, um assassinato. Agora, em “A última expedição”, não há polícia, não há uma formalização da busca, mas a busca ainda está lá, junto com o mistério e a investigação. Também as próximas ideias, o livro que está pronto e não publicado, o livro que tenho em mente para começar a escrever; vou seguindo esse caminho de tornar um pouco mais sutil o que há de busca e investigação. Mas nunca tão sutil que o personagem não possa dizer mas que cazzo está acontecendo? Posso ler outras coisas, gosto de ler outras coisas, mas para mim escrever é isso: alguma pergunta precisa ser levada adiante ao final do livro.
2. “Primeiras estórias”, de Guimarães Rosa
Por causa de um professor incrível no 3º ano do Ensino Médio fui me apaixonar por Guimarães Rosa quando li esse livro de contos. Foi a minha segunda ideia do que era literatura: a experimentação com o texto, a mistura do que é linguagem com o que é história. Viria um novo fôlego para a escrita, que vinha aos trancos com as exigências dos estudos e uma prova por semana.
Escrevia durante as aulas de geografia, física e química. Principalmente durante as aulas de geografia. Esses contos do Guimarães têm qualquer coisa de mágico e mirabolante, sempre tudo escondido nas entrelinhas, que eu metia numas histórias que inventava, com fantasmas, circos de 1928, homens sem sombra em noites de lua. Meu professor incrível leu algumas dessas histórias e me alertou para a influência excessiva, como quem diz calma calma, dá uns dois passos para trás (“e continue escrevendo, não vá parar de escrever”, ele dizia, temendo que a faculdade de Letras fosse me tornar tão crítica que nunca mais escreveria).
Depois durante a faculdade viriam “Tutaméia” e “Grande sertão: veredas”, que hoje em dia são mais favoritos, mas o choque mesmo veio com esse primeiro contato. E, enfim, não parei de escrever.
3. “Sobre meninos e lobos”, de Dennis Lehane
Não vou entrar nos motivos inconscientes que me fizeram e me fazem insistir no policial. Minhas ideias, mesmo as mais fantásticas, continuavam tendo mortes e mistério e investigação e enfim. Joaquim Nogueira, um escritor acreano de policiais paulistanos, me indicou esse livro do Dennis Lehane durante um almoço na Associação dos Delegados de São Paulo (onde eu costumava me encontrar com ele, ex-delegado que é, para conversar sobre a literatura policial e a polícia). Me deu o livro, e logo me meti na leitura.
Ainda lembro de terminar de ler esse romance: estava no meu quarto, à tarde, sentadinha de pernas cruzadas, e precisei resistir a um impulso muito violento de atirar o livro pela janela. Joguei o livro longe mesmo assim, tanto foi o impacto que aquele final causou em mim. (A única outra vez que isso aconteceu foi depois de ler um conto do português Herberto Helder, antes de uma aula de Latim na faculdade; fechei o livro num susto, guardei bem no fundo da mochila e fui até a cantina comer um pão de queijo).
Hoje em dia saquei muito das artimanhas do Dennis Lehane e elas não me impressionam tanto assim, mas no começo cada livro dele era um tapa na cara. “Quando eu crescer quero escrever feito esse cara”, pensei, muitas vezes. “Sagrado”, da dupla Patrick e Angie, foi outro desses. Fiquei uns meses sem ler os livros seguintes porque precisava de uma trégua na violência que eram aquelas narrativas. Porque ele não faz só dizer ao leitor olha aqui como meu personagem sofre e o mundo é ruim tenha pena dele e de todos nós, como já vi muitos escritores, principalmente os americanos, fazerem. É em todo o livro o sentimento de que muito pouco se pode fazer para solucionar o que há de estragado no mundo, e ainda assim a gente continua tentando, dando soco na parede e quebrando todos os dedos. É a narrativa que impressiona pela simplicidade demonstrativa, sem rodeios e interpretações, sem mastigar a conclusão para dar de colher ao leitor babão. É dizer que o mundo é assim, e a gente continua aqui vivendo, que troço curioso.
E de certa forma era isso o que eu queria ser capaz de fazer.
4. “O jogo da amarelinha”, de Julio Cortázar
Logo que terminei de ler esse livro, pensei “esse é o livro da minha vida”. Já são uns oito anos, e a afirmação ainda se sustenta. Cortázar é rei e “O jogo da amarelinha” é o livro da minha vida. É o livro que eu quero escrever, que vou continuar tentando escrever mesmo que não vá conseguir nunca.
Porque eu já tinha lido muitos dos contos do Cortázar e morria de medo de ler um dos romances e me decepcionar. Uma amiga da faculdade me deu uns tapas na orelha e me mandou largar de frescura. Sou e serei eternamente grata.
Cortázar me ensinou que para escrever bem não preciso escrever difícil. Que as palavras as mais simples estão todas aí para um romance incrível. Mera questão de combinação. Cortázar e seus personagens cretinos e amáveis: Horácio é um grande filho-da-mãe, e ao final do livro, paranoico, você quer levá-lo para casa e cuidar dele, mesmo sabendo que ele não vai agradecer quando estiver bem e for embora. Lembro de chegar ao final do capítulo 56 e ler cada vez mais devagar, que era para o livro não acabar nunca.
Certos livros não deviam acabar nunca.
Depois ainda fui ler o “62 – Modelo para armar” e estava tudo ali outra vez, ainda que numa lógica um pouco mais labiríntica. Me encanta como ele cria os personagens e como esses personagens saem andando romance afora sem pedir licença, e como existem com tanta convicção (sobre isso, recomendo a nota final do romance “Os prêmios”, em que Cortázar conta como se surpreendeu com o rumo da própria narrativa conforme escrevia). Gosto de personagens, e para isso Cortázar é mestre. Mais ainda: ler Cortázar e escrever se transformou em movimento contínuo. Se empaco na escrita, bastam alguns parágrafos de um conto ou o trecho de romance e logo adiante sem parar estou escrevendo outra vez.
E é porque não encontro mais livros como esses dois romances mágicos que continuo escrevendo: quando não encontro o que quero ler, me resta escrever o que quero ler.
5. “Ontem não te vi em Babilônia”, de António Lobo Antunes
Esse foi o português que disse a um grupo de estudantes da Unicamp que insistiam em perguntar sobre Saramago que “para vocês brasileiros Saramago está muito bom”. Um maluco arrogante que, dizem as fofocas literárias, uma vez quebrou todos os vidros de um carro que se meteu antes dele na vaga que ele estava mirando num estacionamento, tão logo o dono do carro se afastou.
No mais, sempre gostei da escrita dele mas sempre achei os temas um pouco chatos. Você lê sem parar porque meu deus que texto sensacional, mas aí a história ronc, e a leitura fica nessa batalha sem fim. Ganhei esse “Ontem não te vi em Babilônia” num natal uns anos atrás, um tijolão de 430 páginas que li em dois dias antes de chegar janeiro. A linguagem vai numa espiral que te agarra pela gola da camiseta sem piedade. Há algo do ritmo da narrativa que entra na cabeça e não sai, como uma música que se repete num refrão infinito. A história em si não vem ao caso; foi a forma de contar que me abriu ainda mais uma porta nesse mundo das possibilidades literárias.
Curioso que foi assim um livro só, um livro lido em dois dias, que foi lentamente mudando minha noção de estilo, e moldou mais um pouco minha forma de escrever. Também por perceber que chega um momento é necessário relativizar um pouco o que a gente aprendeu sobre gramática e sintaxe na escola e que, no meu caso, continuei depois ensinando aos alunos. A literatura é maior do que isso, o português é uma língua incrível e também muitas vezes o texto basta para te prender na narrativa sem que nem mesmo um tiro, uma morte, uma investigação, enfim.
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… mas o jogo da amarelinha não acaba nunca, mesmo
ah, luiza, viu que amiga que deu uns tapas na orelha é você, né 🙂
Nossa, seu top 5 ficou sensancional! Tem como não amar os livros dos Karas? Sou fã da coleção toda, rs!
Abraços!
http://www.universodosleitores.blogspot.com.br
Gostei de saber os porquês desse ou daquele livro. Em outras entrevistas com você que achei na internet não tinha visto isso.
Aliás me pareceu bastante sincero e honesto.
Parabéns!!