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O épico humano

"Gilgamesh", o épico mais antigo da história

Gilgamesh, personagem do game "Final Fantasy"

Estilo de narrativa que valoriza o homem e a sociedade está em voga na última década. Desejo humano de um lugar no mundo ou mercadoria?

Você já viu a cena dezenas de vezes, no cinema, nos livros, no teatro, até desenhos animados: personagem descobre ser “o escolhido”, parte em busca de seu destino, enfrenta perigos, conquista amigos, derrota o vilão. Salva o mundo. Tudo cercado por uma aura mágica, efeitos grandiosos, elementos extraordinários e muita aventura. Pouco importa o ambiente, desde a cidade futurista de TRON até os castelos de Harry Potter, ou as cidades destruídas das Crônicas do Mundo Emerso, estes personagens são seres humanos com problemas acima da média, órfãos, ou desajustados.

Sua característica principal influencia diretamente em seu estilo de vida: Harry Potter é um garoto fracassado que vive embaixo da escada em nosso mundo; no universo dos bruxos é o maior herói de todos os tempos. Sistu, de Crônicas de Atlântida, é um jovem promissor, mas que não quer seguir a carreira militar. Os heróis épicos estão aí, como nós, comuns, até o começo de sua jornada.

A épico contemporâneo atingiu todas as artes humanas, incluindo uma de suas mais novas, os videogames. Kratos, protagonista de God of War era um guerreiro como outro qualquer, mas prestes a ser derrotado, implora pelas forças superiores para ser mais forte e acabar com seus inimigos.

Anterior aos gregos, a Epopéia de Gilgamesh é, provavelmente, o épico mais antigo da humanidade e aquele que serve de parâmetro para todos os outros. No ocidente, A Ilíada e a Odisséia exercem esta função. Estilo marcado por sua alta qualidade e métricas calculadas, é composta por versos e tende à objetividade. A preocupação maior está na forma e na criação de um cenário que exalta os personagens, do que eu suas emoções ou desejos íntimos. No épico os protagonistas servem de padrão de comportamento ao leitor. Através da história incorporou também o formato de prosa e é tratado como um gênero literário que explora os grandes feitos de um povo.

Uma história épica pode nascer daquilo que Joseph Campbell acostumou-se a nomear como “o chamado à aventura” em sua descrição do modelo narrativo arquetípico conhecido dos escritores, A Jornada do Herói. Um momento da vida do herói em que ele sai da vida ordinária e vai em busca de seu destino. Foi assim na Guerra de Tróia, quando o chamado do Amor levou Páris a sequestrar Helena; ou o chamado da Vingança leva Menelau a cruzar os mares em busca de sua esposa e do sangue inimigo.

Nós, seres humanos, repetimos essas histórias, mesmo abandonando as fogueiras e o medo do desconhecido, ainda nos encantamos com elas nas telas de cinema ou do computador. Em nossa busca pela individualidade e valorização do “eu” queremos mostrar aos outros que podemos ser especiais.

Em um mundo cada vez mais interligado, onde as fronteiras são cruzadas com o clique do mouse, pode ser que a volta do épico represente um reforço do espírito humano. Subjugados por nossas criações tecnológicas, temos a impressão que perdemos espaço, que somos pouco, que nossas atitudes nada valem. Para isso precisamos do épico, para nos lembrar da força humana e de sua capacidade de vencer os piores desafios. O épico trabalha com a identificação do povo, com a exaltação de suas características, geralmente focando um personagem único, grande representante daquele povo.

Vasco da Gama, em Os Lusíadas, é a alma do povo português, ou aquilo que eles imaginavam ou queriam ser.  Nada mais justo que nossos heróis contemporâneos façam o mesmo, mostrem o caminho, nossas qualidades, mesmo na adversidade.

Todas as histórias já foram contadas(…)” dizia Campbell, mas nunca é tarde para um bom e velho épico, gênero muito popular, representado por seus arautos da cultura pop como o livro e série de filmes Senhor dos Anéis e a grande quantidade de games com ambientações claramente inspiradas no imaginário de Tolkien, como o MMORPG World of Warcraft. Talvez explicável como essencial a essa geração que se encontra mergulhada em um mar de informação antes mesmo de amadurecer sua visão de mundo.

Tudo é épico” reclamam alguns, vendo brotar no cinema mais um “incrível épico sobre amor e amizade”. Mas não teria de ser? Evoluímos mais nos últimos 15 anos do que em todos os séculos anteriores. Descobrimos que a cultura é um bem precioso demais para ser produto, criando a Declaração Universal sobre a diversidade cultural, impedindo que elementos culturais de um povo fossem saqueados por corporações em busca de lucro. Vivemos o cyberpunk, mas desejamos a honra e a cortesia da Alta Fantasia.

O homem, neste cenário quase ficcional, onde um celular pode registrar eventos em tempo real, passou a ser coadjuvante de sua própria história. Parte daí uma busca inconsciente por seu lugar no mundo, de maneira que mesmo o menor de nós se torne importante através de suas ações ou habilidades únicas. Mas como se destacar em um mundo de 6 bilhões de outros seres?

O épico tenta responder a este questão quando torna este ser único e “escolhido”, como se fosse ele o responsável por todos os outros milhões que o observam. Perigoso? Talvez, mas só para aqueles que decidiram responder ao chamado da aventura.

 

 

0 Comments

  1. Obrigado, Thiago! Espero ajudar com os posts.

  2. Thiago Vieira disse:

    Achei muito interessante sua análise, José Roberto.

    De fato, a globalização abre um grande abismo entre a possibilidade do ‘herói’ e banaliza este conceito, posto que dezenas (ou centenas) de estórias se fundamentam (em níveis distintos) no modelo da ‘jornada do herói’. É algo batido? Talvez. Mas certamente um gênero que ainda tem muito a ser explorado, mesclado, reinventado e tudo mais.

    Acredito que o grande barato da literatura, sobretudo a fantástica, é este: reinventar. Transformar o banal em novo, o batido em surpreendente. Se for pra ser com este modelo, que seja! Desde que bem feito acho que vale tudo.

    Mais uma vez, parabéns pelo texto!

    Abraço!