Arthur não regressou naquele outono, mas alguns homens voltaram com a notícia de que o inimigo fora rechaçado. Os filhos de Cynyr estavam no sul tentando reunir guerreiros para engrossar suas tropas, mas ninguém sabia de Bedwyr, e me inquietei ainda mais por sua sorte até que, dias depois, o vi surgir na trilha que conduzia à cabana, apertando junto ao corpo o braço coberto de sangue.
– Bedwyr! – exclamei, em choque, ao mesmo tempo que corria ao seu encontro. Ele deu mais alguns passos vacilantes e se apoiou em mim, sorrindo com o rosto pálido de dor. Meu padrasto veio correndo e me ajudou a conduzi-lo para a choupana, onde a avó, que também ouvira meu grito, já começara a se preparar para cuidar do ferido.
Meu coração saltava no peito enquanto ela desatava as ataduras imundas. Aquilo já era difícil de se olhar, mas depois ficou muito pior: desenfaixado, o punho de Bedwyr terminava num toco sangrento, bem onde se encontrara com a espada de um saxão.
– Eu já vinha a caminho de casa – contou ele, com os dentes cerrados, enquanto a avó ia limpando a ferida. – Estava com quatro homens, e fomos atacados por pelo menos dez. Mandei metade deles para o inferno, mas meus companheiros não tiveram tanta sorte. Foi uma vida em troca de outra. No fim, sobramos eu e um saxão, que já estava ferido, mas mesmo assim conseguiu me encurralar contra uma rocha e me atacar feito um animal. A espada arrancou minha mão, mas em seguida bateu na pedra e se quebrou, e ele ficou sem saber o que fazer por um momento. Foi quando o atravessei com a minha lâmina – e eu juro por Deus, nunca fiquei tão feliz ao acabar com um daqueles desgraçados!
Dizendo isso, ele estremeceu, não sei se pela lembrança ou pela dor do unguento sendo aplicado ao toco. Afaguei seu braço para confortá-lo. Bedwyr me olhou com gratidão e ia dizer alguma coisa, mas nesse momento a avó o interpelou, querendo saber o que era a bolsa de pano que ele trazia pendurada ao pescoço. Estava suja e cheirava mal, mas Bedwyr a abriu como se contivesse um tesouro. E até hoje não sei como não desmaiei ao ouvi-lo contar como, após o combate com os saxões, tinha recuperado a mão decepada e cavalgado durante dois dias na esperança de que a avó pudesse costurá-la de volta.
A ideia inicial para a escrita de “A Dama da Floresta” surgiu na primeira conversa que tive com o Erick Santos sobre a coletânea. Como a Draco publica a série de fantasia juvenil “O Castelo das Águias”, ele sugeriu que meu conto em Excalibur tivesse alguma ressonância desse trabalho, com uma protagonista feminina, com um pouco de romance, com uma escrita que desse uma ideia do que estou desenvolvendo na série. Então, pensei em uma protagonista criada por mim, que se envolvesse com um dos companheiros de Arthur, mas um que não fosse tão conhecido quanto Tristão ou Lancelot.
Minha ideia inicial foi Sir Kay, mas, quando comecei as pesquisas, me deparei com um nome mais interessante: o de Bedivere, que segundo a tradição foi o encarregado de devolver Excalibur às águas (e que primeiro trapaceou, atirando sua própria espada, mas foi desmascarado por Arthur). A pesquisa sobre o personagem na tradição galesa foi ainda mais interessante, pois lá ele se chama Bedwyr, é descrito como um sujeito bonito, um tanto fanfarrão, que é frequentemente ligado a Cai e que tem uma só mão, teve a outra decepada. Eu tinha aí uma boa base para um personagem, então decidi que minha protagonista e narradora seria a mulher de Bedwyr. E que o episódio do cavaleiro atirando Excalibur no lago entraria no conto, com a mulher se indignando com Bedwyr por tentar tapear o rei.
(Abro um parêntese pra falar de algo que é comum no meu processo criativo. Isso acontece muito comigo: com um roteiro ainda mal esboçado, surge uma cena já completamente pronta, ou quase, que se torna tão forte a ponto de me fazer estruturar uma parte da história em torno dela. A cena do pedido de casamento no Castelo das Águias foi uma dessas cenas. A da bronca da narradora em Bedwyr também).
Enquanto estava tomando notas para o roteiro, sobre ambientação e tal, lembrei-me de algo que havia me marcado bastante no ano anterior, durante viagem à Inglaterra. Num museu, em York, vi armas que tinham sido recuperadas de rios e lagos, onde foram atiradas como oferendas para as divindades ligadas às águas. Isso era um costume celta, não apenas britânico, e alguns arqueólogos acreditam que a história de Excalibur provém daí. Então, juntando as coisas, decidi que a história da narradora, de Bedwyr e da própria Excalibur iriam se mesclar numa trama que se inicia com uma farsa montada por Merlin, a fim de garantir que Arthur cumpra seu destino.
Ao escrever, optei por manter nomes, costumes e ambientação mais próximos da tradição galesa, citando alguns episódios que aparecem em poemas antigos e não na literatura arturiana que veio depois de Monmouth. Acho que isso foi legal dentro da nossa proposta de diversidade e gostaria muito que os leitores me escrevessem para dizer o que acharam do conto.
Espero por vocês!
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Nossa, Ana, adorei! Acho que seu conto deve ter ficado muito legal! Ainda mais porque ele segue a linha narrativa do Castelo… e com todo esse background, putz, fiquei seca para ler (tem até romance!!). Puxa, que ansiedade por esse livro! Excalibur, chega logo aqui em casa!
Estou curiosíssima pra ler esse conto. Confesso que fico mais nas leituras pós-francesas das lendas arthurianas, conheço pouco coisa das histórias que se baseiam mais nas lendas galesas. Gostei da abordagem que você escolheu e inclusive compartilho um pouco desse seu processo de criação: às vezes penso numa certa cena no meio de um roteiro ainda nebuloso.
🙂