“Victoria tem um diário e deixou de ser adolescente para se tornar algo que nem nome tem. Marcos não sabe se ama a família de verdade ou se é apenas paixão. Luciana prefere o padrasto ao pai. Mara adolescente quer se livrar dos irmãos, de todos eles. Mara adulta já conseguiu se livrar de dois maridos. Ninguém leva Gil a sério. Mortes, suicídios, casamentos desfeitos, episódios de incesto, abuso, violência familiar e quem sabe combustão espontânea.”
Em breve a Editora Draco publica o romance Quero Dançar até as vacas voltarem do pasto. Pedimos ao autor, Marcelo Ferlin Assami, que falasse um pouco sobre o seu processo criativo e sua obra. Ele fez mais, criou um formato de entrevista para o Draco Blog em que o autor lista 5 influências da cultura pop dentro de seu trabalho em literatura. Nada mais justo que ele inaugurasse o formato com a sua própria entrevista. Com vocês, Top 5 – Marcelo Ferlin Assami:
1. O anime de Neon Genesis Evangelion
Marcelo Ferlin Assami: Em 2014, 14 anos depois do segundo impacto, catástrofe que quase destruiu a humanidade (sendo o primeiro impacto aquele que teria extinguido os dinossauros), uma agência mundial chamada Nerv recruta adolescentes para pilotar androides gigantes e semiorgânicos, os EVAs, e proteger o Japão de criaturas conhecidas por anjos, que seriam enviadas por Deus para causar o terceiro (e definitivo) impacto. Esse conceito gerou um anime de 26 episódios, filmes de animação, vários mangás, chaveirinhos e hentais de todos os tipos.
Acho os 26 episódios de Evangelion, junto com a série Twin Peaks, uma das melhores coisas que já passaram na TV. Um anime que mistura mechas (como Macross), simbologia cristã, o Desespero Humano do pensador dinamarquês Kierkegaard, psicanálise e versões karaokê de In Other Words (ou Fly me to the moon), como não amar?
Draco: Eu ia perguntar da referência à Seele (organização por trás da Nerv) no seu livro.
MFA: Há dois temas de Evangelion que aparecem no Quero dançar até as vacas voltarem do pasto, os adultos serem criaturas sem escrúpulos e corruptas e a disposição dos adolescentes para serem corrompidos. Quando pais e professores são manés, é óbvio que os jovens irão atrás dos velhinhos tarados. A referência à Seele tem relação com isso, enquanto os adultos estão sendo babacas, crianças e velhos forjam alianças às costas dos pais e de outros adultos. Às vezes com a anuência dos próprios pais.
“As três irmãs magricelas brincavam de morto quando eram mandadas para a cama. O morto é obrigado a tirar toda a roupa e se deitar sobre o assoalho do quarto. Na cama faria barulho. Os legistas e os embalsamadores examinavam o cadáver, tocando-o com os dedos e a língua para certificar o rigor mortis.”
Trecho de Quero Dançar Até as Vacas Voltarem do Pasto
2. Lewis Carroll e Alice
MFA: Acho que não preciso apresentar Lewis Carroll e os livros da Alice.
Draco: Ok, há uma referência óbvia a Alice através do espelho no capítulo “O leão e o unicórnio”, mas quase passa despercebido uma referência a País da maravilhas na frase “so rich and green”.
MFA: Grande verdade. Nos dois casos, as referências se estendem para além de Lewis Carroll. Sir John Tenniel, o ilustrador das histórias, fez do leão e do unicórnio caricaturas de Disraeli e Gladstone, os primeiro-ministros da rainha Vitória. E Victoria é uma das personagens principais. Esse capítulo trata de política, mas de política interna, como a relação de poder entre casais e entre pais e filhos. Já “so rich and green”, que é parte da música que o Grifo e a Tartaruga cantam para Alice, é uma citação dupla, de Lewis Carroll e do escritor brasileiro Manoel Carlos Karam, que admiro muito.
Também há uma semelhança entre as histórias de Alice e o meu livro se você pensar que são personagens encontrando personagens levemente doidos. E também que, aparentemente, não há muita preocupação com uma trama. Mas não quero tirar a Alice de ninguém. Você não vai encontrar uma lagarta fumando narguilé no meu livro ou alguém que seja o Rei Vermelho.
3. Mate-me por favor, uma história oral do punk
MFA: Esse livro é uma grande reportagem sobre o movimento punk, indo dos precursores, o Velvet Underground, em 1965, até os estertores e sobreviventes, em 1994. O livro costura pedaços de depoimentos e de entrevistas publicadas e declarações de centenas de personagens que participaram da cena punk. Essencial para quem se interessa por rock ou pela cultura pop das últimas décadas. E muito, muito divertido.
Draco: você já colaborou com a Rolling Stone Brasil e com a revista de ensaios Dicta & Contradicta, seu objetivo é unir pop e alta cultura?
MFA: Não é má ideia.
Meu editor na Dicta, o Martim Vasques da Cunha, dizia que o “pop é brincar com coisas sérias”. Pense na Bíblia e em Drácula. Drácula brinca com a ideia de mortalidade e de longevidade, é pop há 125 anos. Ao mesmo tempo, se você for conferir animes, filmes e seriados, há mais citações da Bíblia que do Drácula. Então outra coisa que você pode dizer do pop é que há uma tensão entre brincar e compartilhar a brincadeira. O pop é permeável ao abuso de referências, é quase sempre derivativo.
Numa resenha da nova edição do Moby Dick (pela Cosac Naif) para a seção Agenda da Rolling Stone, afirmei que o livro era o protótipo do seriado moderno de TV, você tem uma estrutura que mistura papo técnico (cetáceos no livro, vitimologia em Criminal Minds) e histórias episódicas que formam arcos, como as temporadas dos seriados.
Não vou dizer que o pop é de segunda mão, mas quem não vê valor numa peça de brechó?
“No colégio, quando conheceu Marcos, Gil viu-se diante do pequeno deus, um deus com dentes que era também o pequeno cavalheiro. Em silêncio, sem que ninguém soubesse, mesmo Selina, Gil cruzava os mapas. Símbolos ascendentes, símbolos descendentes. Marcos observava que o tema da queda em seu escritor irlandês preferido apontava para o alto. Os mapas do inferno estavam errados, um erro leve. Gil suspirou e retornou ao vagão, pela primeira vez sem olhar muito tempo para ninguém, sentou-se perto da porta. Cai o que está em cima. Algo posto no alto. O metrô como o inferno levava às necrópoles. Os hospitais e as lojas, ao purgatório.”
Trecho de Quero Dançar Até as Vacas Voltarem do Pasto
Draco: Quanto do Mate-me por favor está no seu ipod?
MFA: Alguma coisa. Tem Velvet Underground e muito do Lou Reed. Pati Smith. Clash. Iggy Pop. E um ou duas do Ramones. Como venho do interior, lá você cresce ouvindo Ramones, não importa o seu gosto musical.
O “Quero dançar” trata de jovens e uma parte se passa no interior, então ouvi muito Ramones, ainda que os adultos no livro não ouçam mais punk e os adolescentes sejam pós-punk, e a história se passa quase toda nos anos 2000.
Draco: Por falar nisso, você faz pesquisa para escrever?
MFA: Pesquiso. Para construir os personagens, entrevistei amigos e desconhecidos, acampei nas bibliotecas de psicologia. Fui pesquisar incesto, estupro, gêmeos, esquizofrenia e antipsiquiatria, piromania, doenças de humor e distúrbios de personalidade. Mas espero que nada disso apareça, não há dados nem didatismo no texto.
4. Ardil 22, Joseph Heller
MFA: Infelizmente, a última edição do Ardil 22 traz essa chamada de “romance bem-humorado sobre a neurose da guerra” na capa. O livro é mais que isso. É selvagem, é cheio de humor negro.
A história se passa na segunda guerra, em uma ilha na costa da Toscana. Yossarian é um capitão do exército americano que não quer ser morto na guerra e se recusa a voar o número de missões de bombardeio que os generais insistem em aumentar a cada semana. A única saída é ser declarado louco, só que se você procura o médico para que declare loucura, você está demonstrando que é são o suficiente para voar. Esse é o Ardil 22.
Sou fascinado também pela história da publicação do livro. O editor do Heller, Robert Gottlieb espalhou as páginas do original pela sala e ajudou o escritor a dar a forma final do livro. Editores são os heróis secretos.
Draco: o seu livro lembra o Ardil em alguns aspectos, como a linha temporal zoada. Você acha que o público da Draco está preparado para ele?
MFA: Pelo catálogo e pelo barulho nos blogs e no twitter, o público da Draco gosta de fantasia, terror e ficção científica. Apostar no meu livro é apostar no interesse do leitor pelo diferente. Então, sim.
Não acredito na divisão entre autores de gêneros ou rótulos (cyberpunk, romance policial) e literatura dita séria (“Lit-Bra”, “literatura contemporânea”), acho que o escritor usa os recursos que precisa para construir e contar a sua história. Mas vejo que há um público que reconhece essa divisão e que as editoras têm buscado um meio termo. Se você olhar bem, o serial killer e o investigador ou detetive (excêntrico ou não) são vampiros e dragões que receberam um tratamento naturalista-realista.
Meu conto publicado em Imaginários 3, “Breve Relato da ascensão do Papa Alexandre IX” é de fantasia, mas o “Quero dançar até as vacas voltarem do pasto” não está nem na coluna do meio. Não tem nem mesmo um crime.
Aliás, ao contrário de tantos outros livros, o meu não segue o formato de ter pelo menos um Grande Evento Principal (GEP), como um crime inexplicável, uma festa, um mistério, um ato de vingança, a morte ou ausência de um personagem, para organizar a trama. Nisso o livro é muito próximo da vida.
5. Love and Rockets (dos irmãos Hernandez) e Valentina (de Guido Crepax)
MFA: Dos quadrinhos dos irmãos Hernandez, meu favorito é a série Locas, do Jaime Hernandez. Locas acompanha a vida de Maggie e Hopey, amigas e ocasionais amantes, desde a adolescência no cenário punk da Califórnia chicana até os quase quarenta (onde a história está atualmente).
Valentina , do falecido Guido Crepax, é uma das melhores introduções à psicanálise e às ideias de Sigmund Freud. Valentina Rosselli é uma fotógrafa italiana de moda ajuntada com o crítico de arte americano Philip Rembrandt, que já foi o super-herói Neutron. Metade da história acompanha os delírios eróticos da Valentina.
As duas histórias começaram com elementos ficção científica e foram cada vez mais se interessando pelo relacionamento dos personagens. E nas duas histórias os personagens vão envelhecendo. Quando Crepax parou de desenhar a Valentina, o filho dela, Mattia, já era adulto.
Draco: Histórias em quadrinhos são uma grande inspiração para você?
MFA: Muito do modo como escrevo vem dos quadrinhos. De não confiar muito na ideia de que o leitor vai ler linearmente, do começo ao fim. O que me leva a tomar cada frase como importante. Meu texto pode ter vários punchlines, mas poucos clímax. O “Quero Dançar” você pode abrir em qualquer página e seguir lendo.
Draco: E nada nacional?
MFA: Talvez em algum momento o leitor pense no Luiz Gustavo, que publicava histórias de uma página em Chiclete com Banana, Animal e Mil Perigos. Falando em Animal, saudade do Celso Singo (Rard, o matador de idiotas) e do Milton Trajano (Camarillo Brillo).
E tem quem admiro desde criança, mas que não tem relação com o livro. O Laerte está se reconstruindo, tem passado da tira para a história de uma página, quando sairá do casulo? Acho difícil convencerem o Lourenço a voltar a desenhar. Torço para que a nova edição do Avenida Paulista force o grande Luiz Gê a sair da tumba. E admiro sem restrição a turma em volta da revista do Níquel Náusea, como Spacca (Santô), Newton Foot (Bundha) e o próprio Fernando Gonsales.
Quem tem imagens que podem combinar com o livro e com a história é a desenhista, ilustradora e quadrinista Júlia Bax. Acho genial.
Marcelo Ferlin Assami nasceu em Penápolis, interior de São Paulo, e publica rascunhos no blog equatro.blogspot.com. Participou das coletâneas da editora Barracuda A Visita, com o conto “Até quando, Marcos Jr., abusará de nossa paciência?” e W underblogs .com, primeira antologia brasileira de blogs. Redator, trabalhou nas editoras A Girafa e Publifolha, foi colaborador da seção Guia da Rolling Stone brasileira e é resenhista-colaborador da revista Dicta & Contradicta, onde publicou o conto “Cartas Etíopes”.
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é bem legal saber de ondem veem as inspirações dos autores, ajuda a descobrir novos livros e desvendar os “mistérios” da literatura